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Trovoadas e ameaça de desertificação da caatinga

O calor tem sido tórrido nos últimos dias. Há um abafamento úmido, que desperta a sensação que as trovoadas se avizinham. O céu, frequentemente coberto por nuvens acinzentadas, desiguais, reforça a convicção. Semana passada caíram algumas chuvas que despertaram mais esperanças. Mas, ao longo dos últimos dias, apesar das nuvens persistentes, os aguardados aguaceiros não se precipitaram. Essas chuvas são essenciais como reserva hídrica e para o plantio de futuras safras.
Nas cercanias da Feira de Santana a estiagem está sendo menos severa que no chamado “alto sertão”: aqui, as garoas foram constantes em 2017, atenuando o impacto do estio extenso. Em algumas regiões, não caem chuvas fortes desde 2012, segundo noticia a imprensa com frequência. Daí a esperança renovada nas trovoadas. Em parte do semiárido começou a chover. Mas ainda é pouco diante das necessidades.
A escassez de chuvas vem produzindo cenários dantescos. Quem tem a oportunidade de viajar pode observar. Saindo de Feira de Santana, por exemplo, em direção ao Norte da Bahia – e ao Nordeste brasileiro – a principal via é a BR 116, que atravessa boa parte do país. Suas margens oferecem ao viajante uma contundente amostra do cenário ressequido, com o descortinar de paisagens muitas vezes impressionantes.
A partir de Feira de Santana as cercanias são pontuadas por empresas, povoações, postos de combustíveis. Aqui ou ali a caatinga se insinua, contracenando com o intenso tráfego de veículos, sobretudo carretas barulhentas. Mais adiante escasseia o interesse do capital e a vegetação ressequida prevalece. Extensos juremais e imponentes mandacarus se sobressaem na vegetação espinhosa, inextrincável, hostil.

Desertificação

Até aí, são nítidos os efeitos da seca: nas cercanias das casas que abrigam a população não se veem plantações; no máximo, milharais secos, que o sol implacável dizimou. Aqui ou ali a terra rua – mas devidamente trabalhada – atesta a expectativa pelas trovoadas incertas. Cenários do gênero persistem até depois de Serrinha.
Dali em diante, até as cercanias de Tucano, sucedem-se dezenas de quilômetros de um quadro desolador: a caatinga constante – com clareiras eventuais – vai rareando, até desaparecer completamente. Nesse trecho extenso, às margens da BR 116, o que se vê é a terra nua, esturricada, pálida, estéril, morta, avançando horizonte adentro.
As cercas habituais delimitam propriedades que não valem nada: a terra encarrascada – como dizem os tabaréus – provavelmente está definitivamente perdida; sulcos provocados por torrentes antigas mostram que, ali, há tempos abandonaram qualquer tentativa de aproveitamento econômico.
Não se veem animais: a campina perfeitamente plana, larga, infindável, não abriga rebanhos, porque nada ali pode alimentá-los. Antigos moradores também abandonaram aquelas propriedades: casebres se decompõem com telhados ruindo, paredes desabando, ervas daninhas crescendo nas cercanias, num desolador espetáculo de abandono.

Perspectivas

Aqui ou ali uma persistente árvore sertaneja sobrevive, imponente e solitária. Algum arbusto espinhento até brota, esporadicamente, em meio à desolação. O mais, no entanto, é abandono: as eventuais trovoadas que o tabaréu aguarda com expectativa não vão revitalizar aquelas paragens que só se reanimam depois do povoado de Tracupá. A intensa exploração do frágil ecossistema conduziu àquela ruína.
Naqueles ermos a beleza se resume às chapadas distantes, azuladas, que se confundem com o azul do céu. O entardecer é magnífico: ao prolongado e rubro mergulho do sol  poente se contrapõe o azul diáfano que se encorpa até o precipitar definitivo da escuridão. A partir dali o pretume é intenso, quase palpável.
Apesar de esplêndida – uma carícia na alma de quem transita por ali – a poesia do alvorecer não soluciona a difícil e complexa questão da desertificação daquela extensa faixa de caatinga. Desertificação, inclusive, que não se circunscreve àquele trecho do semiárido.

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