O
Brasil vive uma época de intensa apologia do setor privado. Alguns, movidos por
uma espécie de fé pagã, enxergam – na alienação do patrimônio público, na
prestação de todo e qualquer serviço pela iniciativa privada, na ascendência do
Capital sobre todas as demais dimensões da vida – um fim em si mesmo, uma
fórmula mágica para a resolução dos problemas que afligem a humanidade, no
geral, e a brasilidade, no particular. A lógica do raciocínio binário legado
pelas redes sociais e pelo proselitismo religioso – eternamente movido pela
dicotomia do “Bem” contra o “Mal” – ajudam a explicar a intensidade do
fenômeno.
A
explicação também está no fato de que boa parte dos privatistas mais
desenvoltos – o “liberal-digital” – não costuma ir além dos conceitos mais
elementares apresentados com extrema parcimônia nesses sites que substituíram
as antigas enciclopédias impressas. Conhecem pouco de História – costumam
trafegar pelos clichês – mas destilam uma sabedoria pretensamente
incontrastável.
Quem
professa essa fé e costuma prestar atenção ao redor deve sofrer profundas
decepções: o lógico, o racional, o inquestionável
arcabouço teórico nem sempre resiste às inferências mais elementares. Pegue-se
aí o exemplo da Micareta que findou na madrugada de segunda-feira (23) – e as
centenas de festas similares que acontecem Brasil afora – para pôr à prova
essas convicções.
A
Micareta feirense vem se reestatizando ano após ano. Começou em 2015, quando a
crise abalroou os blocos, cujos associados foram tragados pela recessão e viram
seus rendimentos definharem. Nas três edições seguintes a tendência se manteve,
já que, apesar dos reiterados anúncios de retomada da prosperidade, os
indicadores permanecem decepcionantes.
Sem
os blocos na rua com suas atrações estelares, os camarotes – mesmo recorrendo
às atrações privativas – também sofreram intensa redução na demanda por seus
serviços. Aqui – e em outras praças – os blocos começaram a desistir dos
desfiles, anunciando o retorno no futuro mais próspero. Afinal, empresário
nenhum vai lançar o próprio dinheiro no fogo só por amor à folia.
E a solução?
Sem
o suporte da iniciativa privada – e sob o imperativo da conservação das
tradições – o poder público foi forçado a manter os serviços que
tradicionalmente presta no evento – limpeza, palcos, infraestrutura, iluminação,
postos de saúde, segurança pública – e enveredou na contratação de atrações
para manter a população entretida. Sem essa intervenção, a festa seria muito
mais chocha ou, sequer, aconteceria.
Aqui,
evidentemente, pretende-se enxergar a Micareta como um processo econômico,
responsável pela geração de renda e riqueza num intervalo de quatro dias. Não
se discute o viés alocativo – sobre destinos alternativos para os recursos
aplicados na festa – nem os pulsantes e polêmicos vieses ideológico, moral e –
sobretudo – religioso, que contaminam o debate público recente.
Sendo
assim, percebe-se que a organização da Micareta reflete aquela concepção
keynesiana – do célebre economista John Maynard Keynes – de que o poder público
deve investir nos momentos de baixa da economia e poupar nos momentos de
crescimento. Noutras palavras, alimentar uma conduta anticíclica. Se dependesse
do “deus mercado”, não haveria festa!
Eventuais
profetas liberais que saíssem por aí professando a privatização da Micareta
esbarrariam na realidade incontornável: sem Estado, não há festa. É impossível
reduzir o Estado – provedor de serviços essenciais e mediador dos conflitos
distributivos – às dimensões que alguns apóstatas da civilidade, comuns em
redes sociais, pretendem limitá-lo.
Aspectos
É
claro que, nos escassos limites desse texto, muitos aspectos importantes serão
negligenciados, dada a impossibilidade de aprofundá-los. Mas pretende-se
ressaltar um aspecto importante nos estreitos limites de um insight: a Economia não é uma ciência
exata e, menos ainda, um dogma religioso. Deve-se interpretá-la empregando seu
instrumental – teórico, estatístico, matemático -, atentando, porém, para sua
inegável dimensão humana.
As
eleições presidenciais estão, já, prenhes de pré-candidatos que defendem um liberalismo
econômico vulgar, iracundo, caipira, tosco, rasteiro, pedestre. Para esses
apóstolos da iniciativa privada, o Estado deve se resumir às suas dimensões
mínimas – reduzindo serviços e ampliando a precarização – para que, por
consequência tautológica, num intervalo breve se alcance o almejado paraíso
liberal.
Quem conhece alguma coisa
de História sabe que esse paraíso costuma figurar apenas no plano da retórica. Trata-se
de um ardil sorrateiro de quem pretende colocar o Estado a serviço da própria
classe que, invariavelmente, é a elite. Exemplos pululam no passado e essa
agressiva maré que o País apresenta vai oferecer incontroversas lições de “mais
do mesmo” lá adiante.
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