Se
há um local que espelha o soteropolitano médio, aquele que desempenha funções
intermediárias – o comerciário, o assistente administrativo, o barnabé do
funcionalismo público, o comerciante modesto, o pacato pai de família, o apreciador
da cervejinha e do bate-papo – esse lugar é o largo Dois de Julho, no coração
da capital baiana. Mas não só ele: o camelô, o ambulante, o biscateiro, o
desempregado e até a malandragem arisca identifica-se com aquelas ruas
estreitas que descambam defronte à Baía de Todos os Santos.
O
largo Dois de Julho é plural: há, ali, o sujeito com jeitão conservador,
prestando serviços com sua pasta de documentos debaixo do braço; há o vendedor
de arranjos de flores e de móveis de vime, há o comerciante sisudo, o
“flanelinha” com sua ginga, a pacata dona-de-casa com suas compras e os
intelectuais e os artistas que, nos finais de semana, povoam os bares das
redondezas com suas conversas, gestos e trajeitos.
O
ir-e-vir é incessante: há quem acabou de desembarcar do subúrbio para prestar
um serviço, comprar alguma coisa, aventurar um biscate; há os idosos – saudosos
dos tempos antigos, quando a quietude amansava os espíritos – sentados pelos
bancos; circulam os assíduos frequentadores do centro da metrópole, assim como
os visitantes esporádicos que vieram da longínqua Itapuã ou da distante
Cajazeiras.
Comerciantes
cumprimentam fregueses habituais, lançam olhares desconfiados para a
malandragem andrajosa, examinam os transeuntes farejando potenciais clientes. Padarias,
mercadinhos e armarinhos misturam-se aos letreiros chamativos dos hotéis que
insinuam as potenciais aventuras amorosas que espreitam as redondezas.
Dia
Às
primeiras horas da manhã o Dois de Julho desperta, sonolento, restabelecendo-se
de sua noite e de seus pecados. Gente com compromisso passa apressada,
estudantes fazem estardalhaço mas adiantam-se para a escola, os orientais
silenciosos vão levantando portas corrediças, exibindo os bibelôs baratos que
atravessaram o planeta. Pelo meio da manhã o movimento se intensifica e o
cheiro da comida vai se espalhando pelos arredores, capturando os passantes
mais distraídos.
Tabuletas
variadas exibem cardápio robusto para quem entra vindo ali da rua Carlos Gomes:
mocofato, sarapatel, rabada com pirão e agrião, feijoada, cozido com uma
infinidade de legumes, além do acarajé e do abará, de aroma inconfundível, que
figuram nas preferências de quem vai, antes, saborear uma cervejinha, mesmo nas
sisudas manhãs de segunda-feira. Aqui ou ali, o yakisoba dos orientais se insinua,
demarcando terreno.
Homens
e mulheres – espalhafatosos, ruidosos, alegres, negros em sua maioria –
espalham-se por mesas e cadeiras, celebrando as refeições com apetite
ostensivo. Há quem, atarefado, belisque o frango grelhado do prato-feito barato
e suba, apressado, pelas ruas do Cabeça ou da Forca. Uns aproveitam para a
aposta na loteria ou no bicho, mentalizando sua crença com fé solene.
Onipresentes, os vendedores de bugigangas contrabandeadas circulam com
desenvoltura entre quem almoça.
Antes
do meio da tarde a multidão se desarranja: a trégua do almoço se extingue e vão
desaparecendo aos magotes, subindo em direção à Piedade, às Mercês ou aos
Aflitos, retornando para o São Bento ou para a Praça Castro Alves. Quem circula
anseia pelo frescor das sombras, que vão se multiplicando à medida que o sol
mergulha por trás do horizonte de concreto cinza, em direção às imaginadas
águas azuladas da Baía de Todos os Santos.
Noite
Quando
o sol já tinge as fachadas dos prédios de uma cor alaranjada há uma trégua breve.
Naquele instante, sobrevoam pombos encardidos e espectros depauperados pelas
drogas vociferam, gesticulam, enérgicos, ameaçando as misteriosas sombras que
os assustam. Mas passa: depois a fauna se renova, chega gente para os bares,
para o aperitivo do fim da tarde, antes do retorno para casa.
Pelos
bares, intelectuais destilam teorias com tons discretos, artistas
espalhafatosos lapidam ideias que, lá adiante, ganharão expressão, jornalistas
avaliam, com tom solene, o grave momento político que o país atravessa e gente
do povo celebra a vida, bebendo em largos goles e conversando em altos brados.
Veem-se, também, servidores públicos comentando percalços, elaborando
estratégias.
À
medida que a noite avança o Dois de Julho decai: fecham-se as portas corrediças
dos comércios, recolhem-se os moradores dos antigos prédios, embarcam os
moradores da periferia e, aos poucos, rendida pelo álcool e embriagada de
ideias, a clientela desaparece. Sobram as luzes alaranjadas, melancólicas, da
iluminação pública e os letreiros a neon, chamativos, dos hotéis.
Predomina, então, até as
primeiras luzes da aurora, a tensão marginal da noite que envereda pelos becos
e vãos escuros, escoa pelo silêncio das pedras de calçamento, assusta quem não aventura
encontros inesperados, mas ansiados. Depois, quando as primeiras cores começam
a tingir o alto do céu, lentamente, o Dois de Julho vai se distensionando,
aguardando a chegada de mais uma manhã.
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