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Mostrando postagens de junho, 2022

O sumiço dos patriotas

  Meados de 2018. O ônibus saiu de Salvador bem no começo da manhã. Linha regular, destinava-se às cidades da região sisaleira e, pelo caminho, catava quem se destinava à Feira de Santana, a Serrinha, a Conceição do Coité. Entusiasmado militante de Jair Bolsonaro, o “mito”, o cobrador estava exultante com o resultado das eleições presidenciais. Logo na saída da Rodoviária de Salvador – a manhã era ensolarada, luminosa – saudou alguém, à distância: “Bolsonaro! Bolsonaro!”, a voz alegre, satisfeita. Depois saiu conferindo passagens e, adiante, um acólito do “mito” - que examinava notícias na tela de um celular -, desejoso de puxar conversa, foi logo mencionando informação da Folha de São Paulo, enfiou um papo de desvio de verba no diálogo recém-iniciado; mas o cobrador, rápido feito um raio, reagiu quando ouviu a menção às verbas de gabinete, nem esperou a conclusão da frase: -Lei Renault, Lei Renault! Eles estão chateados porque vão perder a mamata da Lei Renault! Pensei que trocar R

Clic-clac! O fotógrafo!

  “ Porque nós temos agora mais um exagero, mais uma doença nervosa: a da informação fotográfica, a da reportagem fotográfica, a do diletantismo fotográfico, a da exibição fotográfica – a loucura da fotografia”. O título do texto - e o parágrafo acima - não refletem o espanto de nenhum cronista contemporâneo. Pelo contrário: é coisa antiga, de quase 106 anos atrás. Trata-se de texto de João do Rio (1881-1921), jornalista carioca que, atento observador do seu tempo, imortalizou diversos aspectos da vida do Rio de Janeiro no começo do século XX. A crônica foi publicada em O Paiz, no remoto 8 de agosto de 1916. No texto, o autor confessa seu espanto com o fenômeno da fotografia reproduzindo uma cena na Avenida – a atual Avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro – em que uma madame é flagrada pela Kodak de um fotógrafo louro. Espantado, discorre sobre o fenômeno, mencionando flashes em repartições públicas, fábricas, até em igrejas, durante as missas. Nesses ambientes, fotógra

0,1% da população feirense morre de causas violentas todos os anos

  O percentual assusta: todo ano, mais de 0,1% da população feirense morre por causas violentas. No jargão da medicina, trata-se de “causas externas de morbidade e mortalidade”. Envolve situações como acidentes, suicídios, agressões, homicídios, envenenamentos e as controversas intervenções legais – supostos tiroteios entre as polícias e os criminosos – que, vira e mexe, ganham espaço no noticiário com estardalhaço. A tendência se mantém desde, pelo menos, 2015, ano menos mortífero dos últimos tempos. Em 2020, por exemplo, foram 702 óbitos, mais que os do ano anterior (674), mas menos que em 2018, quando foram notificadas 714 mortes. Nos anos anteriores, 2017 e 2016 registraram-se, respectivamente, 660 e 665 ocorrências. A quantidade de mortes violentas na Feira de Santana, a propósito, não é inferior a 500 desde o remoto ano de 2007. Naquela oportunidade, foram registradas 429 ocorrências. A partir de 2008 os números foram crescendo de maneira sustentada, com raros intervalos de de

O lúbrico combatente do “comunismo de costumes”

  Deu trabalho, mas o homem reapareceu no conjunto Feira 6. Enxugava litrinhos de R$2,50 , beliscava mortadela – a mais barata - em cubos, examinava as estudantes da Uefs com o olho acurado, aceso, lúbrico. Não era de negar fogo, parecia insinuar, lançando olhares venenosos. Mas, na verdade, aproveitava a tarde vadia, plácida, de céu azul pontuado por nuvens encardidas, escorrendo mansa. Foi pouco antes do começo deste ciclo de chuvas. À primeira vista, tomariam-no como um idoso pacato, estritamente dedicado ao ócio da aposentadoria. Mas, não: bastam algumas palavras para perceber, na personagem, o fervor patriótico, a flama cristã, o engajamento cidadão, o entusiasmo de cruzado contra o “comunismo”, contra a degeneração socialista. - Esse negócio de inflação é coisa dos comunistas, estão manobrando, prejudicando o capitão! Os dados mais recentes saíram do forno faz pouco tempo: inflação de 1,06% em abril – maior alta desde 1996 – e, no ano, já roçando 4,29%, aproximando-se do teto

Salgado, preço da charque afugenta sertanejo

  A charque – ou carne-seca, sinônimo costumeiro, embora sejam produtos diferentes – sempre foi importante na dieta do sertanejo. A literatura especializada indica que seu consumo se iniciou nos primórdios da colonização, quando os portugueses começaram a desbravar o semiárido nordestino para plantar cana-de-açúcar e criar gado, num sistema de pecuária extensiva. No preparo da charque, o sal e o processo de desidratação permitem que o alimento dure mais tempo. Isso era essencial naqueles tempos em que não existia a comodidade de eletrodomésticos como a geladeira. Junto com a farinha – que, armazenada sob condições adequadas, também tem grande durabilidade – e o café, eram os principais alimentos consumidos naqueles tempos remotos. As mudanças radicais na vida dos nordestinos desde então – a urbanização acelerada, a industrialização, a ascensão do comércio e dos serviços a partir da segunda metade do século XX – não foram suficientes para arrefecer a predileção pela charque. O produt

Como está a vacinação contra a Covid-19 em Feira?

  Vá lá que os casos de Covid-19 caíram na Feira de Santana nos últimos meses: dados da Secretaria Municipal de Saúde da quinta-feira (19) indicam que, naquele dia, havia apenas um paciente internado e foram registrados somente sete novos casos. Mas a situação já foi mais favorável e o número de casos pode crescer, como vem acontecendo em outras regiões do País. É o que estimam infectologistas que vem acompanhando a evolução da pandemia no Brasil. Assim, a vacinação – quem afirma também são profissionais da saúde – segue imprescindível. Sobretudo agora, quando o uso de máscaras foi revogado e as pessoas voltaram a se aglomerar, em festas, bares, eventos diversos e se preparam para as festas juninas que – é a regra – são sinônimo de viagens e de multidões aglomeradas. Há, inclusive, a expectativa de que os casos recrudesçam por conta desse período. A quantas anda a vacinação contra a Covid-19 aqui na Feira de Santana? Há dias o vacinômetro não é atualizado – os dados mais recentes são

O xerife do pavilhão três

  - O sujeito está aí, na cela administrativa. Ontem [domingo] de manhã, 'saiu na mão' [brigou] com um preso no pátio do [pavilhão] três. Surrou o outro, que tem consideração no meio da malandragem. Correram atrás dele e ele foi encurralado na própria cela. Uns trinta foram entrando, todo mundo foi 'currando' ele... Era manhã de segunda-feira no Conjunto Penal de Feira de Santana. Meados dos anos 1990. Quem explicou o episódio foi o agente penitenciário com quem conversávamos sempre, fazendo a cobertura policial pelo extinto jornal Feira Hoje. O brigão – e potencial violentado – aguardava medidas administrativas no 'seguro', pois o convívio no pavilhão três tornara-se impossível. Na cela administrativa – ficava no próprio pavilhão administrativo – ele negou o episódio, os olhos muito abertos, o ar de espanto. Admitiu a briga, seu sucesso na peleja contra o rival. No mais, reconhecia a reação da turba, inconformada com o desfecho da briga. Daí a nova confusão,

O traslado do finado no Ponto de Ipirá

  Foi no começo da década de 1990, na Praça Froes da Mota. Pássaros piavam, álacres, na copa dos oitizeiros. Uma fileira de Kombis brancas espichava-se na lateral da praça, aguardando os passageiros com destino a Ipirá. Nos bancos, muita gente aguardava o embarque, carregando embrulhos, vaquejando crianças, inteirando-se das novidades em conversas, o acentuado sotaque sertanejo fragmentando o silêncio. Naqueles tempos ainda eram comuns idosas e mulheres de meia-idade com saias longas, anáguas e aqueles lenços característicos, cobrindo cabeças e cabelos longos. Idosos com chapelões, barbas alvas, ralas, e botas curtas de couro cru se aporrinhavam, apesar das conversas longas que ajudavam a encurtar a espera. Os motoristas que encaravam os 90 quilômetros da Estrada do Feijão reuniam-se em magotes, entretendo passageiros, conversando entre si. Às vezes, alguém chegava querendo despachar encomenda, indagar sobre valor de passagem, mandar ou saber de algum recado. Naquela época telefone e

O ocaso do debate econômico

  Até os mais fervorosos devotos das privatizações reconhecem: o anúncio – pomposo, solene, apoteótico – da privatização da Petrobras não passa mais uma mentira – há quem prefira a expressão “fake news”, do inglês – do desgoverno de Jair Bolsonaro, o “mito”. Acossado pela alta dos preços dos combustíveis e pela inflação que corroem sua popularidade, o “mito” reage, tenta mostrar serviço, insinuar que não está inerte. No fundo, o anúncio não passa de empulhação, engodo para posicioná-lo como vítima do “sistema”, já que ele, supostamente, é figura “antissistema”. Nisso aí não há nenhuma novidade: é só mais uma mentira – entre tantas outras – que busca enganar a população, mantendo-o como candidato competitivo nas eleições de outubro. O que mais desperta a atenção nem é isso: é o tortuoso, tosco, pobre e fanatizado debate sobre a economia que se estabeleceu nos últimos anos e que se consolidou neste triste desgoverno da extrema-direita. Complexos problemas macroeconômicos tornaram-se ob

Memórias da inflação nos anos 1980

  - Lembro bem daquele tempo de inflação, nos anos 1980. Às vezes a gente estava bem, até comprava iogurte, chocolate, biscoito recheado. Mas depois a situação piorava de novo e voltavam os tempos duros. Durante muito tempo tomava café preto, comia pão sem margarina... Quem relembra isso é um feirense vivido, com quase 50 anos. As recordações não figuram em livro de memórias, nem em crônicas que descansam em fundo de gaveta. Tampouco foram lançadas em mesa de bar ou numa reunião de família. Representam, na verdade, a inquietante conexão entre o passado e o presente, por meio de um fenômeno econômico que volta a assutar: a inflação. - Uma nota de cinquenta (reais) já comprou muita coisa. Hoje você vai numa padaria, num mercadinho, numa farmácia e não compra quase nada. Nem mesmo nas feiras-livres ou no Centro de Abastecimento. Para ele, a paralisia econômica torna tudo muito pior. O auxílio emergencial atenuou um pouco suas perdas na fase mais dura da pandemia – ele é comerciante miú

Quantidade de recém-nascidos caiu em 2020

  No texto anterior abordamos a questão da morte aqui na Feira de Santana em 2020. Em grande medida, o aumento foi um desdobramento da pandemia da Covid-19. Mas – apesar das densas energias da morte, altamente maléficas, que pairam no ar – é bom não se contaminar com o Tanatos : melhor pensar na vida, exaltar na vida. Que seja: no mesmo ano trágico de 2020, a vida seguiu seu fluxo e o número de crianças nascidas vivas aqui na Princesa do Sertão foi mais que o dobro do total de óbitos no mesmo período: 9.261, contra 4.392. Os números, disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, são coletados junto aos cartórios de registro civil. Note-se que esses 9,2 mil nascidos vivos contabilizam o lugar de registro dos bebês, desconsiderando o local de nascimento da mãe. Debruçando-se sobre a série estatística, nota-se uma tendência que exige atenção. É que, em 2020, observou-se o número mais baixo da série desde 2007: naquele ano, foi contabilizado o nascimento

A escalada da morte em Feira em 2020

  A morte tem sido assunto recorrente no Brasil. Não, não foi apenas a pandemia da Covid-19 que trouxe o tema para o noticiário, para uma posição central na vida dos brasileiros. Antes – já em 2018, quando as eleições presidenciais aconteceram - a morte pautou a campanha eleitoral, forjou comportamentos, redefiniu a mentalidade de parcela da população brasileira. Desde então uma pulsão pela morte move parte do País, refletindo-se em múltiplas dimensões da existência coletiva. Não foi à toa que Jair Bolsonaro, o “mito”, galgou o posto de presidente da República. Ele personifica esse ideal de morte. Para êxtase dos que pulsam sob a pulsão da morte, esta vem crescendo, os números confirmam. Às vezes a imprensa divulga notícias sobre óbitos – principalmente em função da Covid-19 – e constata seu crescimento no Brasil. Aqui na Feira de Santana a morte ganhou impulso também, conforme atestam informações disponilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, com base em

O chafariz na feirinha do Sobradinho

  Naquele tempo – começo dos anos 1980 – o acesso à oferta regular de água encanada ainda era uma aspiração dos feirenses. Com muita frequência o abastecimento era interrompido, causando transtornos. Quem dispunha de grandes reservatórios passava menos aperto, tinha sempre água disponível. Mas como se viravam os demais feirenses? Ali, junto à feirinha do Sobradinho, existia um antigo e providencial chafariz. Era ele que auxiliava as famílias das redondezas. Com o tempo, foi se degradando e, hoje, não existe mais. Subsiste só na memória de quem viveu aquela época. Lembro que no chafariz havia uma caixa d'água imensa, visível à distância, com sua fachada cinzenta. De perto, notavam-se suas colunas esguias, impregnadas de limo. Uma única torneira fornecia a água que os moradores das cercanias demandavam, para beber ou cozinhar. Para as demais tarefas domésticas, era necessário aguardar que o fornecimento fosse restabelecido. A organização da fila era pitoresca: uma sequência de vasi

O pranto da Quarta-Feira de Cinzas na Praça do Tropeiro

  Desceu a ladeira do Alto do Cruzeiro na Quarta-Feira de Cinzas. As lágrimas escorriam, caudalosas. Ali as testemunhas eram escassas: raras moradias, algum comércio, muros delimitando terrenos baldios. Quem poderia examiná-lo seriam os motoristas, mas estes ocupavam-se com seus pensamentos, com o trânsito, com os buracos e – suprema desgraça! - , com os preços dos combustíveis. Pouco significava um pedestre chorando lágrimas copiosas, ébrio de pesar, os passos incertos porque os olhos nada distinguiam, embaciados. - Sai, miséra ! - Gritou um, exaltado. Ali na Avenida Canal – o Centro de Abastecimento era apenas um vulto informe à frente dos olhos, as lágrimas persistiam – quase arromba-se nos automóveis, nos caminhões, nas carroças, nas dezenas de motos; Havia feira atacadista, mercadejar ávido, era preciso compensar com lucros a pródiga folga carnavalesca. Soluçava quando contornou poças das chuvas recentes, galgando o canteiro, o barro úmido. Ali distinguia os lombos dos barracõe