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Impressões sobre Montevidéu

Do alto, se intui o frio, apesar de ser dezembro. Na chegada, o avião vai descendo pela infindável planície perfeitamente plana que caracteriza os pampas. Silos – muitos deles – e gado são visíveis do alto, nas regiões famosas pelo plantio do trigo e pela pecuária bovina. Porém, à medida que o viajante se aproxima de Montevidéu, percebe-se uma maior diversidade produtiva, com galpões de empresas, dutos, intrincadas arquiteturas metálicas que lembram a indústria petroquímica.
A cidade se estende à margem do rio do Prata. É referência famosa nos livros de História, objeto de incontáveis querelas entre espanhóis e portugueses colonizadores. Da janela do avião não se vê a margem oposta do rio, território argentino: ele se confunde – com sua densa coloração de limo que, às vezes, assume um tom avermelhado, barrento, cor de tijolo – com as nuvens cinzas que encobrem a cidade com frequência.
É dezembro, mas o frio é intenso. Do alto se veem parques, praças arborizadas, longas calles pontuadas por plátanos vívidos. Desperta a atenção do viajante a ausência de favelas, tão comuns nas grandes cidades do Brasil. Há uma periferia pobre, com ruas sem pavimentação, mas que não abriga amplos contingentes humanos segregados, conforme se percebe.
O mais comum são ruas agradáveis que, somadas, constituem os bairros que abrigam a classe média predominante no Uruguai. O percurso a partir do aeroporto de Carrasco é marcado pela sucessão de clubes, parques esportivos, vilas olímpicas com arquibancadas acanhadas. Os campos de futebol coexistem com os gramados destinados ao futebol americano, que se destacam com suas traves que se veem do alto, da janela do avião.
Na manhã de sábado os carros se movem preguiçosamente pelas calles amplas, vistas momentos antes do alto. Montevidéu não se encaixa no conceito de “selva de pedra”, comum às grandes metrópoles: os prédios são costumeiramente baixos, de poucos andares, o que permite ao pedestre vislumbrar o céu.
A arquitetura traz nítida inspiração europeia: herança da migração intensa, que trouxe ao país platino expressivas levas de migrantes. Inclusive até a segunda metade do século XX, quando espanhóis e italianos abandonaram a Europa arrasada por dois conflitos mundiais.

Leitura

À tarde é possível constatar que o uruguaio preserva o hábito da leitura, como pouco se vê pela América Latina. Livrarias e sebos permanecem abertos até mais tarde, atraindo um público que se dedica a examinar volumes com intimidade. O uruguaio é eclético em relação à leitura: avolumam-se a literatura local, tratados de História e, pela profusão de volumes, lê-se muito sobre a Espanha, pelo que se depreende sobre os títulos expostos nas vitrines.
Crianças, adultos e idosos transitam com surpreendente – para os padrões habituais de um brasileiro – intimidade pelos espaços onde se acumulam livros. São muitas as livrarias, espalhadas pelas ruas tranquilas do centro de Montevidéu e pelos bairros próximos. Na tarde de sábado de luz intensa e frio moderado, o funcionamento desses estabelecimentos contrasta com o comércio integralmente fechado.
À medida que circula pela cidade, o visitante nota que a discrição é virtude comum nesse país meridional. Os prestadores de serviços, por exemplo – garçons, balconistas, jornaleiros -, costumam ser muito eficientes e discretos. Aliás, essa virtude se reflete no prazeroso silêncio que se observa pelas ruas, nos cafés, nos restaurantes, nas lotéricas que funcionam também como casas de câmbio.

Trabalho

A produtividade do trabalhador é alta: em funções como a prestação de serviços – comerciários, atendentes de balcões de frios, até mesmo os motoristas que cobram passagem nos ônibus – é visível a desenvoltura do uruguaio com a tecnologia e com a aplicação da técnica nas mais diversas funções. Parte dessa produtividade decorre da virtuosa discrição, que dispensa firulas e rapapés e se traduz em ganhos de agilidade.
Transitando pela cidade, nota-se que o mercado imobiliário finca suas garras sobre o centro antigo da capital: nos bem localizados bairros das cercanias do centro – chega-se à Ciudad Vieja ou ao Plata em poucos minutos, a pé – veem-se imponentes casarões vindo abaixo, cedendo lugar à coqueluche dos prédios de apartamentos.
O fenômeno é menos brutal que no Brasil, mas, mesmo assim, é assustador: calles tranquilas, silenciosas, com pouco trânsito, pontuadas por casarões e palacetes – o estilo é mais sóbrio que aquele visível nas cidades históricas brasileiras – são devassadas por espigões, cujas unidades são vendidas com os mesmos anúncios chamativos de qualquer lugar – e o trânsito intenso, buzinas e alarmes de garagens revogam a tranquilidade pretérita.
Essas observações esparsas, registradas à pressa e sem método, representam uma pálida tentativa de fixar o cotidiano de Montevidéu. É a capital vizinho Uruguai, com o qual os brasileiros sempre mantiveram uma inexplicável relação de distanciamento. Nesses tempos de crises intensas – econômica, política, social, ética – talvez fosse recomendável rever padrões enraizados no País e, quem sabe, começar a s aproximar dos vizinhos próximos.

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