Sempre
frequentei sebos. Hábito dos tempos de estudante, quando a grana era curta e os
preços dos livros não cabiam no bolso. Mas mantive, vida afora, o costume de
visitar esses estabelecimentos nos centros das cidades que visito. Além do
preço mais em conta, há vantagens adicionais: sempre é possível se deparar com
uma obra rara ou com publicações interessantes cujas edições estão esgotadas.
Além, claro, do contato mais intenso e do cheiro dos livros que despertam
antigas e gratas sensações.
Quem
compra livro antigo, porém, estabelece conexões que vão muito além destas
relações utilitaristas. Há sempre um contato, um fio subjetivo de afinidade com
o leitor anterior. Vá lá que muitos livros repousam em fundos de estantes e, lá
adiante, são repassados, sem nenhuma leitura sequer, para um sebo qualquer para
desocupar espaço ou render algum dinheiro num momento de aperto.
Vá
lá, também, que o livro eventualmente despertou pouca atenção e, depois de uma
leitura desatenta, foi parar numa pilha descartável qualquer. Há menos energia
condensada nessas publicações que despertaram poucas paixões. Mas há, sempre,
aqueles livros intensamente manuseados, cuja leitura magnetizou o leitor. Fica,
ali, uma força represada. O hábito de manusear incontáveis exemplares vai
despertando essa sensibilidade em quem dedica parte da vida à leitura.
É
comum o livro ser possuído sem referências: vem e vai sem anotações, sem
assinaturas, sem datas rabiscadas. Outros, porém – sobretudo as publicações
acadêmicas – ficam prenhes de interpretações e subjetividades, com as atentas
marcações de quem lê. E há livros, nos sebos, que nos reservam preciosos
achados. São esses achados que nos transportam para o universo dos leitores que
nos precederam.
Num
verão recente, comprei num sebo em São Paulo – ali nas cercanias de Sé
paulistana, a meio caminho do bairro oriental da Liberdade – o badalado “Perestroika”,
de Mikhail Gorbachev. Fez muito sucesso em meados dos anos 1980, quando o
império soviético se aproximava da dissolução. Capa vermelha, solene,
destacando-se no balaio de promoções. Mais de trinta anos depois, porém, despertava
pouca atenção.
Pois
dentro do livro, mais tarde, encontrei um currículo. No fundo, não era nem
isso: um pedaço de papel pautado, preenchido a caneta, dentro de um envelope
simples. O autor? Eu vou chamá-lo de JC de Jesus. Nesse singelo documento, ele
requisitava emprego na montadora Volkswagen do Brasil. Nosso leitor
provavelmente é pernambucano – deduzo que esteja vivo – e começou a vida no
Recife: lá, trabalhou como vendedor em uma loja na rua do Livramento. Ficou
pouco mais de dois anos, entre 1977 e 1979.
Um
mês depois – em agosto de 1979 – JC de Jesus já estava trabalhando numa
metalúrgica no Cambuci, região central de São Paulo. Perto, curiosamente, do
sebo onde comprei o livro. Lá, desempenhava a função de polidor. Talvez a
indicação de algum conterrâneo o tenha levado a migrar, aventurando-se na
pauliceia. Mas o fato é que essa primeira experiência não deu certo: logo em
janeiro de 1980 ele estava se desligando da empresa.
Voltou
ao Recife e, lá, foi trabalhar como vendedor de calçados numa loja na Rua Nova,
também no centro. Ficou exatamente um ano, entre maio de 1980 e maio de 1981.
Daí em diante há uma lacuna no currículo do nosso JC de Jesus: somente em
janeiro de 1985 é que ele volta a trabalhar. E na Ford, na Avenida do Taboão,
em São Bernardo do Campo, no famoso ABC. Ficou por lá até 21 de setembro de
1987, exercendo a função de montador oficial.
Em
23 de novembro do mesmo 1987 preencheu o currículo – que não foi enviado –, que
sobreviveu num exemplar da “Perestroika”, chegando às minhas mãos. Nele, JC de
Jesus registra seu singelo pedido de emprego: “Venho através de poucas palavras
escritas falar-lhe sobre o meu conhecimento de meus trabalhos que já fiz. Agora
desejo desempenhar minha profissão na montadora Volkswagen do Brasil”.
É
só o esboço de um currículo, mas como ele sintetiza bem aquela época! JC de
Jesus, como tantos nordestinos, migrou em busca de maiores oportunidades em São
Paulo tão promissor até o começo da década de 1980. Lá, engajou-se como
metalúrgico, indústria pulsante naqueles tempos e que absorvia muita
mão-de-obra. Depois, foi abalroado pela persistente crise econômica da “década
perdida”, pelas reestruturações produtivas.
A
aquisição de “Perestroika”, por si, também é um ato revelador. Mostra o
operário engajado, disposto a discutir as questões políticas, o que era bem
comum naqueles fervilhantes tempos. Isso passou – a propósito, restam poucos
operários na era da automação – e o hábito da leitura, inclusive, foi sendo
abandonado. Pouca gente compra livro hoje em dia. A demanda escassa eleva
custos de produção, tornando cada exemplar mais caro. Daí a necessidade de
seguir recorrendo aos sebos e, às vezes, nos depararmos com fragmentos da vida
de gente como JC de Jesus...
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