Sempre
vejo uns bêbados sob a sombra redonda de uma árvore numa esquina próxima.
Aparecem no começo da manhã e sentam-se no meio-fio, resguardando-se do calor.
Lá, espicham as pernas e o olhar para a rua deserta e poeirenta. Com o sol a
pino, desaparecem, para ressurgir na manhã seguinte. As persistentes garoas de
junho afastaram-nos: a copa da árvore, baixa, protege pouco das gotas
intermitentes. E uma umidade densa, pegajosa, torna o piso insalubre. Naqueles
dias, a poeira e a garoa mesclaram-se, assumindo uma consistência pastosa, que
ajudou a tangê-los.
São
inquietos: levantam, caminham até a esquina, às vezes atravessam a rua, num
passo ébrio sobre as pedras ásperas do calçamento. Daqui intuo as camisas
rotas, desbotadas, as calças encardidas, as sandálias tortas. O que vejo com
clareza são os gestos – enfáticos, teatrais, exagerados – que ajudam a
dimensionar o grau de embriaguez. Em tempos de pandemia desdenham as máscaras,
acessório inútil.
Não
repousam naquela esquina que conduz ao coração da Queimadinha à toa: estão
sempre abastecidos, recipiente de aguardente descansando junto ao meio-fio sob
a árvore. Às vezes, um deles desenrosca a tampa e, com um gesto espalhafatoso,
entorna uma dose caprichada. Nas árvores próximas, os pássaros cantam. No
criativo vocabulário do baiano, aquelas bojudas garrafinhas plásticas têm dois
irreverentes apelidos: “bombinha” ou “granada”.
Aonde
arranjam dinheiro para essa despesa frequente? As atentas observações ao longo
da pandemia trouxeram respostas: alguns recolhem material reciclável – lata,
papelão, vidro – e o vendem num depósito nas imediações. Um deles, troncho
pelas renitentes jornadas alcoólicas, arrasta atrás de si um carrinho metálico,
no qual abriga o papelão. Vasculha as cercanias atento no exercício do seu
ofício. Só relaxa quando se dá folga, acariciando então sua “bombinha”.
Naquela
embriaguez constante, assumida e ostensiva, contrariam a sentença do delicioso livro
“Prelúdio da Cachaça”, do antropólogo e folclorista potiguar Luís da Câmara
Cascudo: “Atenda-se que o brasileiro é devoto da cachaça, mas não é cachaceiro”. Isso era verdade lá no
século XIX, conforme a versão sustentada por Cascudo, amparada em observações
de viajantes contumazes como Augusto de Saint-Hilaire, George Gardner e
Wied-Neuwied. Este último, a propósito, foi enfático num comentário: “Sóbrios
como todos os brasileiros”.
Convergem,
porém, quando se considera a cachaça bebida de cabra. Quem é cabra? O
próprio Câmara Cascudo elucida: “A poesia anônima e popular não indica o uso da
cachaça ao branco (...) e ao negro brasileiros, mas sim ao Cabra, vagueando englobadora de mestiços, de várias procedências”.
Examino os devotos da caninha e
enxergo sintonia com a poesia popular: o magote é de pardos, à exceção de um
branco encardido pela poeira daquela esquina.
“Prelúdio
da Cachaça” – etnologia, história e sociologia da aguardente no Brasil,
conforme o solene subtítulo – investiga os primórdios da produção da cachaça no
país, a partir de uma minuciosa investigação bibliográfica. Até na África –
Moçambique, Angola, Guiné-Bissau – Cascudo foi investigar o tema, a origem da
expressão cachaça. Obviamente,
incursiona também pelos aspectos sociológicos e culturais, num texto que flui,
prazeroso. Faz tempo que foi lançado: em maio de 1967.
Nesses
meses aziagos, reapresentei-me ao livro. Comprei-o no inverno de 2007, durante
um evento acadêmico lá em Londrina, no Paraná. Fazia frio, caía uma garoa finíssima,
quase imperceptível, mas fui folheá-lo numa belíssima alameda ladeada por
pinheiros, no campus da Universidade Estadual de Londrina. Aquela aquisição foi
valiosa, rendeu um artigo que apresentei, dois anos depois, no Centro de
Convenções de Havana, num congresso internacional. Bem no meio daquela crise
econômica que atiçou a esquerda mundo afora e em Cuba também.
Hoje
o “Prelúdio da Cachaça” ajuda a entender a disposição ancestral, irresistível,
famélica, para a aguardente, a cachaça, a cana, a caninha, dos intrépidos bebedores da esquina. Nem temem a Covid-19,
naquele estado de permanente anestesia mental. Enquadram-se na categoria dos
folclóricos bêbados de bairro, tão comuns aqui na Feira de Santana.
É
que nos faltam os bêbados de centro da cidade, porque o centro feirense é
despovoado, quase deserto de vida fora dos horários comerciais...
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