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A crônica da farinha de mandioca

 

Pão-de-pobre. Esse é apenas um dos nomes da prosaica farinha de mandioca. Durante séculos ela foi a base da alimentação no Brasil Setentrional. Desde a década de 1970 o consumo vem em declínio. E, a partir do começo do século, a substituição por outros produtos se acentuou na dieta do brasileiro. Aqui na Bahia não foi diferente: se mais de 24 quilos eram consumidos, per capita, em 2002, essa quantidade caiu para pouco mais de seis quilos em 2017. Os números são da Pesquisa de Orçamento Familiar, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.

Lembro que, noutros tempos, o produto era muito mais farto ali no Centro de Abastecimento. Dezenas de sacas – aquelas de 60 quilos – amontoavam-se defronte aos varejistas que, atarefados, atendiam a clientela ali no galpão de cereais. Combinada com o feijão, o arroz e uma proteína animal qualquer – os mais pobres atacavam de ovo –, a farinha era parte importante da dieta do sertanejo. Mesmo do sertanejo citadino, sem conexão com a vida rural.

As andanças da vida me permitiram atestar a qualidade da farinha aqui das cercanias da Feira de Santana. Autoridades no produto garantem que aquela produzida na vizinha São Gonçalo dos Campos é a melhor da região. Melhor até que as do Recôncavo, tradicional circuito produtor desde o período colonial. Lá, Nazaré firmou fama noutros tempos.

O cheiro perfumado e a consistência – muito suavemente granulada – são requisitos de qualidade. Como baiano saudoso, provei farinhas grossas, insossas, nas andanças em restaurantes de Belém do Pará e de São Luís do Maranhão. Infelizmente contracena mal com os primorosos peixes e camarões daquela região. No Piauí, no Ceará ou no interior de Pernambuco também enfrentei sufoco, mastigando, desgostoso, saudoso da farinha baiana.

Quando por aqui as secas eram muito severas, importava-se farinha de mandioca do Paraná. Era o que informavam comerciantes no Centro de Abastecimento. Apesar da granulação parecida, o preparo industrial, a longa viagem e o armazenamento envelheciam o produto e comprometiam o sabor. No Brasil Meridional a farinha de mandioca é associada ao nordestino. Há, até mesmo, um certo estigma, que a associa à pobreza, à fome.

Lá em São Paulo, no Parque Dom Pedro II – na zona cerealista nos fundos do badalado Mercado Municipal – dezenas de armazéns vendem incontáveis condimentos e especiarias do planeta inteiro. Pois deu trabalho encontrar farinha de mandioca. Vi-a, desanimado, fina, quase como pó de mármore, num saco imenso. “É de Feira de Santana”, assegurou o vendedor. “Eu sou de Feira de Santana”, repliquei e ele encurtou a conversa.

A qualidade da farinha baiana tem raízes longínquas. Bert Jude Barickman, brasilianista que andou estudando os produtos do Recôncavo – além da farinha, o fumo e o açúcar – informa sobre a importância do produto na Salvador dos séculos XVIII e XIX em “Um contraponto baiano”, livro de 2003: “Por mais variada ou até rica que pudesse ser a cozinha baiana, o trivial dos moradores de Salvador resumia-se a um pequeno número de gêneros. Entre eles, o principal era a farinha de mandioca”.

Em sociedades predominantemente agrícolas, como a baiana, a farinha de mandioca combinava-se a leguminosas, como o feijão e a alimentos como frutas, óleos, gorduras, carnes e peixes, assinala o pesquisador. Só que a maior parte das calorias diárias vem de um alimento principal rico em amido: “Na Bahia, esse alimento era sem dúvida a farinha de mandioca”.

O consumo não era brincadeira: os mais abastados consumiam, por dia, cerca de 567 gramas. A fartura chegava noutros ambientes: “Era essa a ração que se distribuía aos soldados aquartelados em Salvador e aos escravos empregados pelo Celeiro Público. Essa era também a ração dos presos pobres das cadeias da cidade”, informa Barickman. Muita farinha, para os exíguos seis quilos anuais dos dias atuais.

O que comem, hoje, os baianos mais pobres no lugar da farinha? Conversas com uma fonte credenciada – que conhece bem a periferia da Feira de Santana – indicam que os alimentos processados se sobrepõem à farinha de mandioca e ao feijão. Macarrão instantâneo, biscoitos, bolachas, lanches e salgadinhos incorporaram-se à dieta dos mais pobres. E vem contribuindo para o impressionante aumento da obesidade e do sobrepeso na última década.

A migração do campo para a cidade é coisa antiga. Foi intensa até os anos 1980. De lá para cá nasceram os filhos desses migrantes, já com perfil mais urbano. Periférico e pobre, mas urbano. Mudaram-se também os hábitos, sobretudo em função da correria imposta pelo trabalho, que favorece as refeições prontas. Daí o declínio do consumo da farinha.

Hoje, a paçoca – farofa de carne-seca desfiada –, o pirão e o pé-de-moleque estão se tornando produtos sofisticados, oferecidos em restaurantes caros. Até a farinha de mandioca – Quem diria – está se tornando gourmet. Apesar do consumo em queda...

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