Publicado originalmente em Maio/2020
Antigamente uma parte dos
brasileiros cultivava a ilusão de que a vida das pessoas chamadas “de bem” – na
média, a classe média branca – tinha importância. A banalização da morte –
sobretudo aquela promovida pelo Estado, por meio de suas polícias – alcançava
apenas a estigmatizada bandidagem e aqueles infelizes que, por azar, são pobres
e residem nos ambientes em que viceja a marginalidade. Noutras palavras, morria
a gente da periferia, preta, pobre e analfabeta. Eram as vidas que, numa aceitação
tácita, podiam ser sacrificadas.
A pandemia do novo coronavírus
subverteu, em parte, essa lógica. Segue morrendo muita gente nas favelas e
bolsões de pobreza com o Covid-19. Mas aquela importância teatral que se
atribuía à vida da classe média foi para a vala. Literalmente. Afinal, o que é
que significa o afã em retomar logo as atividades econômicas, botar todo mundo
para trabalhar, mesmo com a pandemia colhendo seu milhar de mortos quase todo
dia?
Muita gente de classe média,
acostumada a viajar para a Europa, contraiu o Covid-19 e morreu. Qual foi a
reação oficial? “Gripezinha”, “E daí?”, e “Todo mundo morre um dia”, só para
ficar nas tristes – e mais cruéis – referências. É bom lembrar que, noutros
tempos, havia respeito e luto quando morria a gente branca, bem-nascida. É o
que se via quando caía um avião ou naquele incêndio da Boate Kiss, lá no Rio
Grande do Sul.
Isso acabou. A pressão pela
retomada das atividades econômicas é agressiva. Sabe-se que muito mais gente
vai se contaminar e morrer. Inclusive o chamado “cidadão de bem”. Inclusive, também,
a classe média. Mas não importa: a pulsão genocida que ascendeu no Brasil nos
últimos anos não respeita mais endereço, cor de pele, nem classe social. Morra
quem tiver de morrer, desde que a economia funcione, que haja produção. Um
milhão pode morrer? Não importa! A economia se sobrepõe à saúde e à própria
vida. E o projeto reeleitoral de Jair Bolsonaro, o “mito”, também.
O diabo vem zombando do Brasil
com muita frequência. Quis o trágico destino que o horror ascendesse ao poder
ano passado. E que a maior crise de saúde pública em um século acossasse o
brasileiro no meio do caos administrativo, da balbúrdia ideológica, do
desgoverno conduzido por paspalhões e incompetentes.
O horror é tamanho que até mesmo
a classe média – sempre poupada das agruras que afligem os mais pobres – foi
tragada. A pandemia do Covid-19 traz uma contundente lição para o brasileiro: a
vida, aqui, não vale nada. Agora, nem mesmo a da classe média. Quem quiser, que
se vire para sobreviver sozinho porque o País não tem governo e ajuda não cai
do céu.
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