É
tempo de pipa nos céus da Feira de Santana. Aqui, da janela de isolado social,
acompanho o balé destes brinquedos no céu da Queimadinha. É melhor vê-los nas
tardes de sol: multicoloridos, produzem um contraste vivo com a amplidão e o
azul da amplidão. Mas tem chovido muito e, em boa parte dos dias, o céu é um
teto baixo de nuvens cor de chumbo, com seus crepúsculos castanhos. Até quando
o sol aparece, muitas vezes, há nuvens – pardacentas, encardidas – que diminuem
a visibilidade do espetáculo. Mas, mesmo assim, acompanho-o nos momentos de
ócio.
Noutros
tempo existia a raia – artefato semelhante, mas quadrangular – e, o que vejo, à
distância, assemelhe-se muito àquelas pipas graúdas que se empinam nos céus
encardidos das grandes metrópoles. São até mais belas e imponentes e, sob o
balanço do vento, bailem com a mesma graça. As caudas – o termo “técnico” dos
tempos de infância escapou-me aqui – que auxiliam na navegação aérea são
portentosos e dançam, elegantes, com o sopro da brisa.
As
pipas não desbravam o céu solitárias: há, sempre, várias contracenando num balé
ininterrupto. A brincadeira – que atrai crianças e adolescentes entusiasmados –
não se esgota com as pipas no céu: há, ali, uma batalha ferrenha, que muitas
vezes só termina quando há apenas uma delas no céu. É o que, noutros tempos, se
chamava de “toque”: a batalha que só termina quando uma pipa se desprende no
ar, melancolicamente, levada pelo vento, com a linha cortada pela linha mais
afiada de outra pipa.
É
o “tempero” que faz as linhas se romperem quando se entrelaçam. “Tempero” é uma
mistura de cola e vidro pisado, aplicado nas linhas. Apesar da competição, os
meninos que se movem, ágeis, sobretudo divertem-se, mesmo quando se enredam
numa dessas disputas que elevam, às nuvens, gritos, impropérios e interjeições,
no tom feliz e despreocupado da infância.
Nessas
disputas, quando uma das pipas se desgarra, um enxame de garotos corre, veloz,
para recolher o brinquedo. Alguns recorrem a cabos de vassoura e pedaços de pau
para levar vantagem sobre aqueles que só dispõem das próprias mãos ávidas. Quem
perde no “toque” não requisita a pipa de volta e aceita o revés. Esse é um dos
códigos misteriosos que rege o lúdico ofício de empinar pipas.
O
espetáculo que, às vezes, acompanho, nos finais de tarde – entardeceres
castanhos e amarelados se sucedem, conforme a disposição das nuvens no céu de
inverno feirense – traz recordações muito vívidas da minha infância. É que,
menino, fui entusiasmado pelas raias, no começo do distante ano de 1986. Foi
tempo de raia de janeiro a março. Ficava na rua da Palma, lá no Sobradinho,
empinando, acompanhando os “toques”, até que a noite caía e ficava impossível
manter o artefato no céu com a escuridão.
Ouvíamos,
então, o coaxar dos sapos e das jias nos brejos miúdos que os olhos d’água
formavam. Num, bem mais amplo – de lá, avistávamos a saída da Feira-Serrinha, para
além do casario das Baraúnas de Cima, numa época de poucas casas – havia
misteriosas taboas, que despertavam nossas imaginações infantis. Alguns
asseveravam que, ali, encafuavam-se perigosas cobras d’água. No céu de verão,
estrelas cintilavam, vívidas, mesmo com a iluminação urbana.
Uma
intensa – inesquecível – sensação do que é a liberdade ficou como legado
daquelas tardes, que nem foram tantas. Mas tudo era tão profundo que equivalia
a uma vida inteira. Quando se torna adulto, o menino percebe, desolado, que
aquela sensação pueril se foi. Para nunca mais? Não, às vezes, ela emerge –
irreprimível – do peito, fortalecendo a convicção de que a vida vale a pena e se
deve prosseguir na caminhada...
Comentários
Postar um comentário