Publicada originalmente em Maio/2020
A
garoa começou a se desprendeu das nuvens, macia, no meio da tarde. Uma névoa
prateada envolveu o casario feirense e diluiu os espigões que se espicham, portentosos,
nas cercanias do centro da cidade. Às vezes, a chuva tímida se encorpava. E o
vento fustigava-a contra os raros passantes nas ruas desertas, açoitando-os no
rosto, no tronco encolhido, nas pernas. À distância, adivinhavam-se as caretas contrafeitas,
contrariadas.
Aquele
horizonte prateado foi se tornando tristonho à medida que a tarde caía. Às 17
horas assumiu uma coloração plúmbea, angustiante. Depois foi cedendo àquele
castanho clássico dos poentes chuvosos. E foi tudo: logo vieram as luzes das
lâmpadas elétricas tingir a atmosfera com tons sanguíneos. O que ficou? É só mais
uma tarde chuvosa de maio que vai se apagar da memória.
Tudo
indica que, à noite, o céu vai permanecer denso de nuvens, mesmo que a chuva
ceda. Ontem foi assim: nuvens pálidas invadiram a amplidão, escondendo as
estrelas. Na véspera, porém, o céu estava claro e não havia, sequer, fiapos de
nuvens. Então foi possível observar, mais uma vez, a notável diferença dos
últimos meses.
A
atmosfera está mais limpa desde o começo da pandemia. Aquela névoa encardida,
discreta, que se vê nos dias claros, sumiu. À noite, isso permite enxergar
melhor as estrelas, muito nítidas, que reluzem no céu feirense. É o resultado
óbvio do trânsito menos intenso, que reduziu as emissões de gases tóxicos. Mas
hoje, pelo jeito, vai ser necessário se contentar com as nuvens e com as chuvas
mais cristalinas, caso caiam.
Em
Salvador se vê o mar e a baía de Todos os Santos com muito mais nitidez. As
cores são mais vivas e a luminosidade é ainda mais arrebatadora. O fenômeno não
se limita à Bahia: mesmo em São Paulo – com suas ferruginosas névoas de gases
tóxicos – o céu está mais limpo. É claro que a trégua é passageira. Mas não
deixa de ser animador. Talvez até a pandemia tenha seu lado bom.
Essas
observações singelas são o que conforta nesses tempos de pandemia e desatinos.
Até há pouco, faltava tempo até para apreciar as garoas do inverno ou uma tarde
ensolarada qualquer. Talvez a pandemia ensine a importância dessas pequenas – e
gratuitas – contemplações.
É
muito melhor que intoxicar-se o tempo todo com o noticiário, escandalizar-se
com a moralidade farisaica dos novos donos do poder. Ou com sua compacta
incompetência que vai, certamente, arrastar a fase mais grave da pandemia até
sabe Deus quando.
Então,
é melhor apreciar a chuva que umedece o solo feirense, encantar-se com a garoa
que banha a longilínea e luzidia palmeira imperial que sacode, graciosa, aqui
perto...
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