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O canto da casaca-de-couro

 Levei um tempo para descobrir o nome da ave cujo canto tanto me encantava da janela de casa. No forçado exílio doméstico da pandemia, ouvi com mais frequência seus trinados e, depois de alguma pesquisa na internet – meus conhecimentos ornitológicos são bem elementares, só arrisco aquele básico da infância urbana – descobri que se trata de um exemplar de casaca-de-couro, ave nativa aqui do semiárido. O nome científico, como sempre, é muito mais pomposo: Pseudoseisura cristata. E integra – vejam só – a família Furnariidae.

Refiro-me a uma ave, mas, na verdade, sempre vejo um casal. Caso não sejam casal constituem uma dupla, no mínimo, muito afinada. Eles pousam com frequência numa dessas árvores catingueiras de copa modesta, tronco enrugado e galhos espinhosos. E vivem em voos endiabrados, misturando-se aos pardais e aos bem-te-vis que, pelo menos por aqui, ainda são fartos.

Além do canto – um sonoro TIU-TIU-TIU-TIU-TIU-TIU-TIU cujo tom vai declinando – o aspecto também chama a atenção. A penugem da cabeça é arrepiada e lembra um pouco aqueles punks da década de 1980. E a cor? A cor é um vermelho ferruginoso, cor-de-telha, que se sobressai no verde pardacento das árvores catingueiras.  Só que nem preciso vê-los para sabê-los por perto: seu canto exuberante se sobressai no meio dos pios monocórdios dos pardais.

O inesquecível Jackson do Pandeiro – em letra de Rui de Morais e Silva – imortalizou o canto da casaca-de-couro num contagiante forró: “Duas casacas de couro/Quando começa a cantar/Parece dois violeiros/Num galope a beira mar”. É imagem poética, apropriada. O refrão desse forró antigo é fascinante e evoca memórias infantis: “Xô, xô, xô, xô/Casaca de couro”...

Daqui também vejo o ninho, engenhosamente encaixado no ângulo reto do concreto de um poste de iluminação. Jackson do Pandeiro não esqueceu de mencionar o abrigo da ave na canção: “Parece um arapuá/Cheio de vara e algodão/O ninho de uma casaca”. Por aqui não há algodão, cuja produção, no Nordeste, se concentrou nas cercanias de Campina Grande, lá na Paraíba. Mas noto que é tecido com uma confusão de freixos miúdos recolhidos das árvores próximas.

Quando as garoas prateadas se desprendem do céu branco de junho – essa chuva benfazeja tem sido constante desde o fim de abril – as casacas-de-couro somem. Devem estar abrigadas em seu ninho. Daqui não as vejo. Mas descubro, pesquisando, que a obra é sofisticada, envolvendo até mesmo um túnel em cujo fundo são depositados os ovos que vão assegurar a perpetuação da espécie.

Aliás, descubro que a espécie não está ameaçada de extinção. Pelo contrário, espalhada pelas lonjuras nordestinas – além da Bahia, está até no Maranhão, Ceará e Pernambuco – a casaca-de-couro está até em proliferação. É uma excelente notícia. Isso me anima a seguir atento a seu canto que, inclusive, soou agora há pouco, como que saudando essa pálida homenagem...

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