Publicado originalmente em Julho/2020
O
silêncio das noites de pandemia da Covid-19, muitas vezes, só é estilhaçado
pelas buzinas estridentes dos entregadores de comida por aplicativo. Eles estão
por todas as partes da cidade, com seus múltiplos modelos de motocicleta, seus
capacetes estilizados, seus blusões surrados e sua pressa desesperada. Na
inquieta escuridão destes tempos, eles são os protagonistas da noite feirense,
deslizando sobre o asfalto áspero e luzidio de ruas e avenidas. Cumprem a nobre
missão de garantir o acesso cômodo de muitos feirenses às suas refeições.
Pois
ontem (25), Brasil afora, houve mais uma paralisação destes profissionais, que
reivindicam melhores condições de trabalho. Aqui na Feira de Santana, pelo
menos durante o dia, o movimento foi menos frenético que o habitual. Tudo
indica que parte dos entregadores feirenses aderiu à mobilização. Estão
corretos: quem conhece um pouco da realidade de quem ganha a vida sobre duas
rodas se avexa com a imensa precariedade.
Vejo-os
com frequência aqui da janela que me permite enxergar a vida nestes tempos de
isolamento social. Muitos fazem suas entregas sem equipamentos de segurança –
já vi alguns até sem máscara –, expondo-se e expondo a clientela. Chegam
apressados e, mal encostam a motocicleta – uma minoria trabalha com bicicletas
– já vão saltando, recitando nomes e endereços para porteiros, avançando com
passos largos em direção aos seus destinos.
Mal
se desincumbem de uma tarefa, já aboletados na moto, vão checando o novo
endereço, ganhando tempo para a próxima entrega, ligando o motor com aquele
gesto febril e partindo, deixando atrás de si o silêncio que se adensa,
novamente, aos poucos. À distância, ouve-se que acionam a buzina aflita a cada
cruzamento sombrio.
Quantos
trabalhadores feirenses asseguram o sustento da família equilibrando-se sobre
duas rodas? É difícil saber. Faz anos que muita gente sobrevive transportando
passageiro, numa faina de dar dó. Mas,
agora, com a pandemia e a redução na quantidade de passageiros, muito mais
gente está apelando para o transporte de encomendas – alimentos e remédios se
destacam –, enfrentando imensas adversidades.
Os
aplicativos de comida que vendem facilidades, no futuro, serão vistos como os senhores
contemporâneos de escravos. Com sua propaganda agressiva, vendem uma
modernidade que se espatifa no respeito às condições de trabalho. Pagam uma
miséria, fazem exigências draconianas, exploram o desespero e o desalento de
centenas de milhares de brasileiros, sobretudo dos mais pobres e dos mais
jovens.
Caso
estes fiquem doentes ou sofram algum acidente, desgraçam-se: só há renda com
serviço prestado e só amparo na difamada rede pública de saúde, essa mesma que
os vampiros no poder desejam privatizar. Só agora, com a pandemia, é que esse
drama ganhou visibilidade no Congresso Nacional. Prometem – sempre as promessas
– avaliar projetos de lei que garantam algum direito a esses profissionais.
Portanto,
nobre feirense que enfrentou algum embaraço quando pediu comida ontem, releve e
apoie a mobilização dos motoboys brasileiros. Sei que a fome é grande e o
direito do consumidor é maior ainda, mas é preciso empatia em tempos de
pandemia. Essa gente presta inestimáveis serviços. A comida sempre chega
quentinha e dentro do prazo e, às vezes, o cidadão desempenha sua tarefa com um
sorriso no rosto, apesar de todas as atribulações do ofício.
Mais
direitos para os trabalhadores de aplicativo pode significar êxito numa grande
batalha da guerra contra a barbárie da desigualdade...
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