– Tá tudo errado!
E
deu uma pancada no volante do automóvel para realçar a indignação. Discorria
sobre o recesso de julho em escolas e faculdades. “Onde já se viu? Duas férias
por ano!”, exasperava-se. E recorria ao bordão: “Tá tudo errado!”. Era
motorista de aplicativo. Presumi que sem nenhuma experiência com educação. Mas
distribuía sentenças sem constrangimento.
Era
meio de tarde. Sol de inverno, trânsito congestionado. Depois começou a elogiar
os paulistas. E, obviamente, a desancar os baianos: “Gente sem disciplina,
aceita tudo dos políticos. Lá em São Paulo é diferente, não é essa bagunça
daqui”. É paulista? Não, mas viveu por lá muitos anos. Dirigia táxi. A crise
apertou – aquela de 2015/2016 – e foi forçado a retornar à Bahia. Naquele
momento, pelejava em volante, trabalhando com aplicativo de passageiros.
Passou
a viagem contrariando minhas esporádicas observações. Que fazer? Deixa o
sujeito lá, com a mágoa dele. A corrida chegou ao fim lá na Uefs. Examinou o
pórtico e lançou a farpa: “A USP é muito maior”. Nem lembro mais a sequência do
diálogo. Só sei que, no fim, ele lançou uma pérola para me espezinhar: “Tanto
dinheiro gasto com universidade e pobre não tem direito a entrar”. Não perdi a
oportunidade de fustigá-lo:
-
E para quê pobre em universidade?
Desci.
Ficou ao volante, com cara de bobo, surpreso com aquele comentário. Bem
deplorável. Mas serviu para desestabilizá-lo. Fosse aquele papo uma disputa
entre reacionários, talvez capitulasse com aquela frase. No fundo, ficou pasmo
com a reação, não com o comentário em si. Provavelmente concorda com o horror.
Nunca esqueci essa situação, que aconteceu tempos atrás.
Aquele
sujeito não é exceção. Não falta quem veja por aí a necessidade de “consertar”
o País. Quem o quebrou? Os “comunistas”, a partir da década de 1980. Os mais
fanáticos – e ignorantes – teimam em afirmar que o Brasil era idílico lá atrás,
durante a ditadura militar. Não há informação nem argumento que os demova:
trata-se de uma questão de fé. E fé passional, sem concessões à razão.
Com
a pandemia do Covid-19, o repertório de crenças se ampliou. Agora, creem que o
vírus é algo criado pelos chineses; as medidas restritivas são invenção dos
comunistas que querem quebrar a economia; e a cloroquina é a solução mágica
para o mal. O “mito” deles – Jair Bolsonaro – encarna a sabedoria que se bate
contra o logro.
Hoje
(17) essa gente promoveu mais uma manifestação lá em Brasília. Vão minguando.
Não apenas por lá, mas no Brasil inteiro. Nem todo mundo se dispõe – mesmo
entre os que votaram no “mito” – a se sujeitar a tamanho vexame e
constrangimento. E nem todo mundo quer se arriscar a morrer, contrariando as
orientações médicas. No momento de insensatez que o Brasil atravessa – são
epidemias paralelas, de Covid-19 e de insanidade – o mais recomendável é, de
fato, ficar em casa.
Mesmo
que, por aí, não falte quem repita a ladainha adotada desde que a
extrema-direita se assanhou até chegar ao poder:
–
Tá tudo errado!
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