“Nunca vi uma cidade tão caracteristicamente brasileira como a ‘boa terra’. Boa terra! É isso mesmo. A gente mal pisou na cidade baixa e já se sente tão em casa como se ali fosse a grande sala de jantar do Brasil”. Essas foram as primeiras impressões do poeta Manuel Bandeira sobre Salvador, numa visita à cidade, na primeira metade do século XX. Na capital baiana, o poeta dedicou-se às igrejas – visitou uma porção delas – e registrou, em uma crônica batizada, singelamente, de “Bahia”, aspectos urbanísticos e arquitetônicos do centro histórico.
Quem
lê a crônica – publicada, originalmente, no livro “Crônicas da Província do
Brasil”, de 1937 – impressiona-se com o conhecimento arquitetônico e as detalhadas
descrições do poeta. Mas, quem conhece sua trajetória não se espanta: entre
1903 e 1908 Manuel Bandeira frequentou a Escola Politécnica, em São Paulo.
Pretendia tornar-se arquiteto, mas a tuberculose frustrou suas pretensões,
forçando-o a uma longa temporada de cura na Suíça.
Em
Salvador Manuel Bandeira entusiasmou-se com o poeta feirense Godofredo Filho,
seu anfitrião naquela visita: “Foram dias de tocante contemplação esses em que
andei pelas praças, ruas e becos da Bahia em companhia do guia mais inteligente
e mais solícito que se me podia deparar: Godofredo Filho”.
O
poeta dedicou um longo parágrafo à culinária baiana, que o encantou. Godofredo
Filho também figura como anfitrião nessas incursões gastronômicas: “Godofredo
me levou com mistério à cozinha modesta onde a preta gorda Eva preparava, com a
simplicidade do trivial mais fácil, as mais estupendas misturas de dendês e pimentas
queimadas que já provei em minha vida”, extasiou-se Bandeira.
Adiante,
ele esmiúça o ritual: “Era passar lá às 9 da manhã e encomendar: peixada de moqueca,
ou vatapá, ou caruru, ou efó, ou galinha de ó-xin-xin”, menciona, o que deve
ser o consagrado xinxim de galinha. Segue a descrição: “Quando se voltava ao
meio-dia encontrava-se um prato cheiroso e complicadíssimo que parecia exigir
um mês ao menos de manipulação”.
Na
sequência do texto Manuel Bandeira dedicou-se a descrever, com minúcias, as igrejas
de Salvador. E vai além da mera descrição, enriquecendo o conteúdo com detalhes
históricos que absorvem o leitor e cultivam o interesse pela fascinante
primeira capital do Brasil. Aqui e ali, ele ressalta a manutenção de
características coloniais em muitos casarões do centro histórico.
Quase
no fim do texto, Manuel Bandeira reconhece a contribuição do poeta feirense às
suas incursões: “Godofredo Filho me levou a quase todas as velhas igrejas da
Bahia, bisbilhotando nas sacristias e desvãos escusos para descobrir peças
interessantes”. Na sequência, o poeta pernambucano discorre sobre algumas
imagens encontradas nas antiquíssimas igrejas de Salvador.
Anos
depois de acompanhar Manuel Bandeira, Godofredo Filho tornou-se diretor do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, órgão ao qual
permaneceu vinculado durante décadas. Nasceu aqui na Feira de Santana em 26 de
abril de 1904 e estudou Filosofia e Arte Brasileira na então Universidade da
Bahia – embrião da Universidade Federal da Bahia – em Salvador.
Exerceu
o magistério, mas se notabilizou defendendo o patrimônio arquitetônico da Bahia
e Sergipe. Contribuiu para o tombamento de igrejas, solares, capelas e sítios nos
dois estados nordestinos. Em 1953, seus esforços renderam uma distinção: junto
com o escritor Sérgio Buarque de Holanda e o arquiteto Lúcio Costa, representou
o Brasil no Comitê Internacional de Sítios de Arte e História, da Unesco, em
Paris.
No
site www.webgodofredofilho.ufba.br é possível encontrar 14,5 mil documentos produzidos
sobre sua vida, obra e pensamento, ao longo dos seus 88 anos. Godofredo Filho
faleceu em 1992 e foi sepultado em Salvador. Em 2004 – no centenário do seu
nascimento – a Câmara Municipal trasladou seus restos mortais para a Feira de
Santana. Trabalhando no legislativo feirense à época, acompanhei de perto as
comemorações e até viajei a Salvador para participar da cerimônia.
O
impulso inicial para a preservação do patrimônio arquitetônico no Brasil foi
dado na gestão Gustavo Capanema, que esteve à frente do Ministério da Educação
em meados dos anos 1930. Seu chefe de gabinete era o poeta Carlos Drummond de
Andrade. Legado que se perpetuou – com a atuação em escala regional de nomes
como Godofredo Filho – até os dias atuais, com todas as limitações materiais
sobejamente conhecidas.
Hoje
a preservação do patrimônio arquitetônico do País está sob ameaça, como se vê
no noticiário, inclusive com algumas tresloucadas nomeações para o IPHAN.
Triste momento para a memória de tantos que lutaram, durante décadas, pela
preservação da História deste País. Entre eles, se inclui o poeta feirense
Godofredo Filho.
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