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Vendedores de ontem e hoje nas ruas da Feira

Sempre ouço, lá fora, o carro do ovo passando. Uma voz rascante anuncia 30 ovos por dez reais. Um alto-falante, daqueles de camelô de feira-livre, amplifica a voz. Às vezes, chego à janela para examinar o veículo. É um automóvel antigo – cuja pintura no teto está manchada –, abarrotado de placas de ovos. Imagino que a pandemia da Covid-19 e a crise econômica favoreceram os negócios. Afinal, está sempre enfrentando, estoico, as vias esburacadas da Feira de Santana.

Mas há novidades na praça. Neste ramo, surgiram os vendedores de iogurtes, chocolates e biscoitos de uma multinacional de alimentos. Passam anunciando promoções incríveis em veículos e motocicletas plotados. Importaram a estratégia, que é antiga, da periferia de São Paulo. Costumam comercializar produtos no fim do prazo de validade. Daí as ofertas tentadoras, que magnetizam a clientela.

Noto com pesar que uns e outros, coitados, não tem o carisma dos vendedores de outros tempos. Quando os vejo, lembranças distantes, da infância, afloram. Nos anos 1980, quem passava de porta em porta vendendo seus produtos na rua da Palma, ali no Sobradinho, cativava mais. Não dispunham de apetrechos tecnológicos, mas eram portadores de uma simpatia inata e – mais – traziam sempre um sorriso estampado.

Naquela época, os finais de tarde eram de “Chico do Pão”. Trazia o produto num engradado na garupa da bicicleta. Uma buzina estridente auxiliava-o, advertindo as donas-de-casa. E lá iam os meninos recolher o pão e testemunhar o inevitável sorriso. Negro, alto, esguio, “Chico do Pão” não perdeu o sorriso nem quando começou a perder os dentes.

Sua memória afiada se antecipava aos pedidos, já que passava ali toda tarde. Os pães de doce – recheados de açúcar – faziam sucesso junto à garotada. Lembro quando ele sacava os impressionantes maços de notas do bolso – naqueles tempos de inflação galopante as cédulas valiam pouco – para entregar o troco. Muitos pagavam no fim do mês: os pedidos iam para um caderno espiral, cujas páginas iam se encardindo com o manuseio contínuo.

Passava gente vendendo leite também. O sujeito que vendia desfilava com chapéu de couro e gibão, montado num cavalo manso. Nas ancas do animal, dois toneis de alumínio abrigavam o produto, que ia sendo recolhido num caneco fosco. Engraçados eram os animais – quase todos tinham o pelo escuro – abanando com graça o rabo, enquanto aguardavam, pacientes, o desfecho da transação.

Passavam também aqueles que despertavam a euforia infantil – ambulantes com picolés da fruta, com as baianinhas multicoloridas, com o algodão-doce azul e rosa, com o quebra-queixo, com a taboca e a pamonha – quebrando o silêncio das tardes com seus pregões.

Naquela época os carros eram raros. Pelas ruas, o silêncio era intenso. Muitas áreas ainda eram despovoadas, as aventuras infantis sempre conduziam aos diversos olhos d’água das cercanias, naquele êxtase de ver a água brotando milagrosamente da terra. Nos começos de noite, as estrelas cintilavam muito vivas no céu; e, nos brejos encorpados pelos olhos d’água, havia o coaxar monótono dos sapos.

Tudo foi passando: os micromercados e as padarias extinguiram a ocupação de “Chico do Pão”; vender leite pela rua tornou-se atentado à saúde pública; supermercados e padarias arrebataram a tarefa. Mais carros surgiram, os brejos e os olhos d’água foram aterrados, deram origem às residências de alvenaria com portões metálicos inteiriços. E aquele silêncio indescritível, prazeroso, pulsante?

Aquele silêncio, hoje, só sobrevive na memória luminosa de quem viveu aqueles dias...

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