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Mostrando postagens de 2022

Placas de inauguração contam parte da História do MAP

  Aprendi que a História pode ser contada sob diversas perspectivas. Uma delas, particularmente, desperta minha atenção. É a da Administração Pública. Mais ainda: a dos prédios públicos – sejam eles quais forem – espalhados por aí, Brasil afora. As placas de inauguração, de reinauguração, comemorativas – enfim, todas elas – ajudam a entender os vaivéns dos governos e do próprio País. Sempre que as vejo, me aproximo, leio-as, conectando-me com fragmentos da História, – oficial, vá lá – mas ricos em detalhes para quem busca visualizar em perspectiva. Na manhã do sábado passado caíram chuvas intermitentes sobre a Feira de Santana. Circulando pelo centro da cidade, resolvi esperar a garoa se dispersar no Mercado de Arte Popular, o MAP. Muita gente fazia o mesmo. Lá havia os cheiros habituais – da maniçoba e do sarapatel, dos livros e cordeis, do couro das sandálias e apetrechos sertanejos – mas o que me chamou a atenção, naquele dia, foram quatro placas. Três delas solenes, bem antigas.

O asfalto que sepulta lembranças

  A descoberta não faz muito tempo, talvez duas semanas: asfaltaram a rua Deputado Rui Santos, ali no Sobradinho. Ia à afamada feirinha do bairro numa manhã de domingo quando, ao dobrar na rua da Liberdade, me deparei com a reluzente camada de asfalto. Coisa recente, intui, constatando a transformação, irreversível. Fiquei até com a impressão de que o cheiro de betume ainda dançava no ar. Não, não defendo ruas esburacadas, nem renego o festejado progresso que o asfalto, supostamente, denota. Mas é que a Deputado Rui Santos – só fui descobrir o nome correto da rua há pouco, numa consulta à internet – faz parte do meu passado. Não recordo dela na poeira, como deve ter sido no começo. Recordo-a calçada – sempre as mesmas pedras ásperas do calçamento feirense, azuladas e róseas – abrigando uma infinidade de disputas de “golzinho” na minha infância e adolescência. “Golzinho” era diversão simples, sem sofisticação: pedras ou sandálias demarcavam o gol estreito, medido pelos pés; uma surra

Propaganda eleitoral é diversão garantida

  Fiquei impressionado com a propaganda eleitoral na televisão. Mais: fiquei entusiasmado. Estamos salvos: há muita gente bem intencionada, altamente qualificada, mobilizada para tornar a Bahia e o Brasil melhores. Quem quiser constatar é só acompanhar as transmissões, no começo da tarde e à noite. Nem vou mencionar as campanhas majoritárias: os candidatos a deputado – estaduais e federais – são suficientes para eletrificar as esperanças de um futuro melhor. A turma está tão entusiasmada que não se limita ao trivial eleitoral – lutar para melhorar a saúde, a educação, gerar emprego e renda – e avança prometendo assumir funções que, no papel, cabem ao Executivo. Tudo bem: num País em que o presidente da República terceirizou o orçamento para o “Centrão” e vive tentando usurpar atribuições do Judiciário, não há problema nenhum. Há os insatisfeitos – sempre há os insatisfeitos – que reclamam dos chavões, dos clichês, das frases feitas que ornamentam as breves falas dos candidatos. Não v

A dissimulada simpatia pelas milícias

  -Sou contra esse negócio de direitos humanos! Nem sei se o senhor é a favor, pode até ser, mas acho que vagabundo tem que ter medo de polícia! Quando é preso, tem que apanhar, cair no cacete, como era antigamente! Eles matam pai de família e esse pessoal dos direitos humanos não vai na casa, mas quando é vagabundo, aparecem logo lá, fazem o maior escarcéu! O sujeito pilotava um veículo batido, enferrujado, decrépito. Trajava camiseta falsificada de time de futebol, bermuda, sandálias. Motorista de aplicativo. Deplorava na sociedade essas inclinações humanitárias que, segundo ele, estimulam a vagabundagem, a marginalidade. O silêncio do interlocutor o inquietava. Pelo retrovisor encorajou – exigiu – opinião. Ouviu: -Concordo! O País está entregue aos larápios. São eles que mandam. Veja aí essa coisa de PCC, de milícia... Aí, com o comentário, o homem abrandou: a exaltação que o punha agitado se desfez abruptamente. A palavra proibida – milícia – o desestabilizou. Ficou sem jeito, t

Pesquisas alimentam folclore eleitoral baiano

  Pesquisa eleitoral sempre causou polêmica no Brasil. Na Bahia, então, desde a eleição de Jaques Wagner (PT) em 2006, no primeiro turno, – as pesquisas indicavam reeleição do governador Paulo Souto no primeiro turno – o assunto acirra os ânimos, provoca acalorados debates. Não falta quem só atribua credibilidade às pesquisas que favorecem seus candidatos favoritos, outros – mais radicais – desdenham de quaisquer levantamentos e por aí vai. Na sexta-feira (26), o Ipec – instituto que reúne antigos executivos do Ibope – divulgou um levantamento sobre as eleições baianas. Nele, o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto (UB), crava 56% das intenções de voto; Jerônimo Rodrigues (PT), ex-secretário da Educação e candidato governista, alcança 13%; Já João Roma (PL) – ex-ministro de Jair Bolsonaro, o “mito” -, está com 7%. Curioso, fui consultar pesquisas anteriores, do Ibope, de 2006 e 2014, quando o petê prevaleceu depois de largar em desvantagem, conforme levantamentos da época. Em 2014, por e

Lucifé

  O episódio foi há quase duas décadas. Aconteceu em 2005, por aí, lá em Itaberaba. Mulherengo e beberrão, o cidadão resolveu regenerar-se, abandonar a vida desregrada que rendia falação na vizinhança, numa cidade miúda – não recordo qual - na Chapada Diamantina. À época, os primeiros fios de cabelos brancos começavam a despontar nas têmporas, precisava criar juízo. Passou, então, a frequentar uma igreja nas redondezas de casa. Certa manhã, chegou no trabalho, comentando: -O pastor falou sobre Lúcifer. Disse que significa anjo de luz... A imagem fascinara-o. Lúcifer não apenas era anjo, mas de luz, reluzia, irradiava divindade. Entusiasmou-se, tocou adiante aquele conhecimento - que agadanhara na leitura de versículos bíblicos - nas rodas de conversa na empresa. Um dos colegas – motorista – também se encantou com a expressão, que vinha a calhar: mortificava-o a escolha de uma expressão para o lameirão do caminhão que conduzia em extensas jornadas Bahia afora. -Vou mandar pintar Lúc

Campanha começa com eleitor arredio, assustado

  Quando era criança, costumava acompanhar familiares – meu pai, minhas irmãs – até as seções eleitorais em que votavam. Para menino, aquilo era uma diversão e tanto: a agitação dos cabos eleitorais com suas camisetas, bandeiras e adesivos, o incessante ir-e-vir dos eleitores, as filas extensas à frente das salas, os santinhos voando, acumulando-se nas sarjetas, os carros com suas buzinas estridentes e seus jingles , os candidatos no corpo-a-corpo tentando arrebatar eleitores no calor do sufrágio, as incessantes transmissões radiofônicas, com novidades o tempo todo. Os maiores locais de votação costumavam concentrar os cabos eleitorais, a militância. Bandeiras, adesivos, camisetas – estas últimas, depois, foram proibidas pela Justiça Eleitoral – produziam rica diversidade de cores, de números, de ideias. Embora cada um corresse atrás de suas convicções recrutando eleitor, hostilidade não era a regra, havia até uma simpática convivência, temperada pelo bom humor dos baianos. Até hoje

Auxílio Brasil cresceu, mas famílias em vulnerabilidade também

  Aumentou o número de famílias beneficiárias do Auxílio Brasil aqui na Feira de Santana, o sucedâneo do Bolsa Família, rebatizado às vésperas das eleições presidenciais para alavancar a candidatura de Jair Bolsonaro, o “mito”. Chegou a exatas 68.063 famílias beneficiárias em agosto. No mês anterior eram 61.732. O valor médio do benefício também subiu: passou de R$ 401,02 para R$ 600,95, confirmando o reajuste amplamente anunciado. Em agosto, foram desembolsados R$ 40,7 milhões em benefícios, incluindo os diversos penduricalhos. É bom lembrar que esse novo valor só está garantido até dezembro, enquanto durar o “estado de emergência” aprovado sob encomenda para impulsionar o projeto reeleitoral do “mito”. A finalidade da manobra – arquitetada pelo “Centrão” no Congresso Nacional -, foi reduzir a rejeição entre os mais pobres. Objeto de amplo estardalhaço midiático, o festejado Auxílio Gás segue contemplando poucas famílias necessitadas no município: somente 1.201 foram atendidas em

Prosa vadia sobre a geração beat

  Lembro bem que foi em fevereiro de 2020. Não sei exatamente por quê, mas planejava ler Jack Kerouac, ícone da geração beat nos Estados Unidos. Era uma dessas ideias fixas que surgem do nada. O fato é que numa tarde de domingo – sempre as tardes de domingo – enquanto aguardava o embarque na Rodoviária de Salvador, me deparei com On The Road na prateleira de uma livraria. Não resisti ao impulso e adquiri um exemplar. Enquanto acomodava o livro na mochila, pensamentos sombrios me espreitavam: era publicação para mofar em estante, dificilmente o leria, etc. Veio, pois, a pandemia da Covid-19. Em friorentas noites de julho daquele mesmo ano, acabei lendo a obra em pouco mais de uma semana. O texto era o manuscrito cru, original, resgatado. Lá estavam as personagens com seus nomes reais, sem máscaras. Lá estava a tensão do texto elaborado com velocidade febril, em pouco mais de 20 dias. Lá estava, também, o espírito daquele tempo que inspirou uma geração inteira nos anos 1960. On the R

Utopias bananeiras em Teolândia

  Numa viagem recente passei por Teolândia, cidade miúda que fica ali no Vale do Jiquiriçá, a pouco mais de 200 quilômetros da Feira de Santana. Lá, residem cerca de 15 mil pessoas, segundo dados do – defasadíssimo – Censo de 2010. A fruticultura é uma das vocações econômicas daquela região. Quem viaja pela BR 101 vê, nos morros arredondados que circundam a rodovia, múltiplos cultivos. Entre eles, se sobressai o da banana. A árvore singular, com suas folhas largas sacudindo ao vento, sobe e desce vale e morros e brota até no solo úmido às margens da estrada. Na chegada a Teolândia – o casario encarapita-se morro acima estendendo-se quase até o cume barrento, muito íngreme, logo depois do rio Preto – a presença da banana é sufocante. Enfeita as barracas precárias erguidas com bambus, pencas acumulam-se junto aos quebra-molas na BR 101 e são objeto até de um feioso e maltratado monumento numa praça localizada num aclive abrupto. Sem alternativas melhores de trabalho, parte da população

O flamenguista da L200 na delicatessen

  Quem estava na área do self-service foi logo notando. O homem chegou com estrépito, manobrando com pressa e fúria para estacionar a caminhonete possante – uma L200 cabine dupla – na vaga estreita defronte à sofisticada padaria. Depois desceu batendo a porta – óculos escuros espelhados, camiseta falsificada do Clube de Regatas do Flamengo – e debochou do flanelinha , solícito e submisso, que ostentava uma camiseta puída do Vitória: -Quero ver é quando seu Vitória vai enfrentar o Flamengo em Salvador para eu ir ver o jogo! Foi empurrando a porta, os olhos ariscos farejando conhecidos. Ninguém. Então, enveredou para o espaço em que funcionava o self service . Mencionou aos berros a fome que o consumia – era quase meio da tarde – e catou prato e talheres com gula, avançou para as bandejas. Misturou lasanha com linguiça frita, feijão de caldo com batata frita, estrogonofe com farofa, salada de maionese com ensopado e panqueca. Despejou molho lambão e molho árabe, curvando o curvo para

Edinho Jacaré: O único feirense campeão brasileiro por um time baiano

  À primeira vista, o nome de Joselias da Conceição Pereira pode até passar despercebido. Quem acompanha o futebol baiano, no entanto, sabe muito bem quem é Edinho Jacaré ou, simplesmente, Edinho, lateral multicampeão baiano com a camisa azul, vermelha e branca do Esporte Clube Bahia. Poucos jogadores podem apresentar um leque tão amplo de títulos pelo tricolor: tetracampeão baiano (1981-1984), depois tricampeão (1986-1988), Edinho ostenta também o título mais importante da História recente do Bahia: o de campeão brasileiro de 1988, quando compôs o elenco que, entre outros craques, reunia Bobô, Charles, Zé Carlos e Paulo Rodrigues. São, portanto, oito títulos ao longo de nove temporadas defendendo o Esquadrão de Aço (1981-1989) e 552 jogos. À frente de Edinho com mais partidas pelo Bahia, só o carismático ídolo Baiaco e o campeão brasileiro de 1959, Henrique. A entrevista para a equipe do Digaí Feira aconteceu na residência do ex-lateral, no bairro Jardim Cruzeiro. O papo começou, ób

O oásis do Mercado de Arte Popular

  Desembarcou na Estação Rodoviária no fim da manhã. Desviou dos passageiros, das malas e valises, das caixas, dos carregadores, dos fiscais, motoristas e cobradores e saiu pelo portão lateral do desembarque. O sol acolheu-o na rampa que conduz à saída. Refugou as corridas de táxis, contornou uma poça fétida de lama, aventurou-se entre os automóveis, as motos, as bicicletas, os pedestres, um caminhão enorme em manobras estrepitosas e galgou, com satisfação, a calçada que delimita hoteis baratos e restaurantes populares ali na Comandante Almiro. Suspirou curto, aliviado, têmporas latejando. O suor despontava na testa. Luzidia, a calva refletia a luz cariciosa do sol de inverno. Aproveitou para examinar os incontáveis e multicoloridos paineis das lojas próximas prometendo, com letreiros chamativos, os preços mais baixos e os produtos mais incríveis. Em volta, aquela agonia de gente, os pedestres correndo para os ônibus, os trabalhadores correndo atrás do real, os consumidores corren

Preço do botijão de gás pesa mais no bolso

  O valor ainda nem foi pago, mas o adicional do Auxílio Gás já vale menos para os baianos. A partir desta segunda (01), os consumidores pagarão 8,2% a mais pelo botijão de gás de 13 quilos. O aumento é uma decisão da empresa privada que adquiriu a refinaria Landulpho Alves, já durante o desgoverno de Jair Bolsonaro, o “mito”. Os baianos, portanto, seguem experimentando as delícias do liberalismo caboclo, anunciado como redentor nos últimos tempos. Estimativas indicam que o botijão custará entre R$ 6 e R$ 8 a mais. Vai oscilar, em Salvador, entre R$ 130 e R$ 140. É o quinto aumento do ano. Até 2020 os preços eram bem mais em conta na Bahia, não indo além dos R$ 68. Ironicamente – ou não - o custo dobrou no desgoverno de quem prometeu baixar à metade o preço do produto. Os aumentos não vão parar por aí. Há rumores de que os grandes empresários – e os pequenos também - estão planejando reajustar os preços seus produtos para agadanhar parte do acréscimo temporário dos benefícios e, ass

Cancelar Micareta foi decisão sensata

  Ontem (27) a prefeitura anunciou o cancelamento da Micareta extemporânea programada para setembro. A justificativa foi o aumento no número de casos de Covid-19 – a quarta onda está aí, à toda, embora menos letal por causa da vacinação - e o risco da disseminação da varíola dos macacos, doença que vem se disseminando mundo afora e que – tudo indica – está chegando com força também no Brasil. A medida é sensata, mesmo com muitas cidades anunciado a retomada de seus festejos. No noticiário, o prefeito Colbert Filho (MDB) estava sob críticas incessantes desde que anunciou a intenção de promover a festa em setembro. O bombardeio começou na Câmara Municipal – o antagonismo ao Executivo, lá na Casa da Cidadania, é implacável, inclemente – e se espraiou pela cidade, reverberando na imprensa. As críticas foram se avolumando com inusitada acidez nas emissoras de rádio e tevê, nas plataformas digitais, na mídia impressa. Parte dos críticos acenava com os riscos da pandemia como argumento.

Auxílio Brasil atende só 43% de famílias necessitadas em Feira

  Em agosto começam a ser pagos os R$ 200 adicionais do Auxílio Brasil, sucedâneo do Bolsa Família. Serão só cinco parcelas, até dezembro. A partir do ano que vem, o valor volta aos atuais R$ 400. Uma manobra no Congresso Nacional – a aprovação do “estado de emergência” - autorizou o pagamento, às vésperas das eleições. Como todo mundo sabe, trata-se de um ardil para ampliar a aceitação de Jair Bolsonaro, o “mito”, junto ao eleitorado mais pobre, que o repele. A partir de agora, fica a expectativa da repercussão do benefício junto à população. Objetivamente, a iniciativa é um remendo débil no cenário de imensa pobreza que aflige os brasileiros. A Feira de Santana é uma ótima amostra para se dimensionar como é necessário fazer muito mais em relação à pobreza. Isso para além das medidas eleitoreiras, claro. Os números seguintes são do próprio Ministério da Cidadania e – reitere-se – não são informações forjadas por uma conspiração comunista, como muitos lunáticos costumam farejar. Aqui

O baba no campo da feirinha

  -... Rolô a bola no campo da feirinha ! -Vai, vai! Toca, p*rra! -Fecha, fecha! Marca, fi d'uma égua! -Isso, Toinho! Vai, garoto! Dá aqui! Aqui! Não! -Abre na ponta, c*ralho! -O cara tá livre lá! -Volta, Railto ! O cara tá sozinho, p*rra! - Parô , parô ! Falta! -Falta, uma p*rra! -Falta! Falta aqui! Dá a bola! -Marca, Inga! P*rra! -Que banho de cuia ! O bicho é craque! -Beleza! O garotinho tem futuro! [...] -Não, miséra !… Presta atenção antes de tocá… -Saiu! Lateral bola, lateral bola! -Abre na direita! Abre na direita! -Vai! Cruza! Pro gol de cabeça! -Éééééé! C*ralho! Valeu, Capoeira! -P*rra! P*rra! -Calma, calma! Vamo virá! Vamo virá! -Essa leseira não marca ninguém, cacete! -E tu, cabrunco? -O ôto só se mascarando , c*ralho! Toca a bola! -Vamo lá, vamo lá! [...] -Calma, volta pro goleiro, volta pro goleiro! -Dá aqui, Zé! Isso, beleza! -Esse é grosso ! Cerca, cerca! -O cara dá ouro , o cara dá ouro ! Não falei que dá ouro ? -Dá aqui, dá aqui

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express

O Flu de Feira em 6º lugar na Taça Brasil

  Nem todo mundo sabe, mas o Fluminense de Feira já figurou entre os dez primeiros colocados numa competição nacional. Foi em 1964, quando a equipe – campeã baiana no ano anterior – ficou em sexto lugar na extinta Taça Brasil. Tudo bem que o Touro do Sertão disputou só três jogos e acabou eliminado sem maiores delongas. Mas essa foi a melhor colocação do tricolor feirense em toda a sua trajetória em competições nacionais. O Fluminense só entrou na disputa nas quartas-de-final, para enfrentar o Ceará. O time de Fortaleza, por sua vez, vinha de dois mata-matas contra equipes do Nordeste, enfrentando Confiança e Náutico, que ficaram pelo caminho. Mas esses times venderam caro a vaga, pois só foram eliminados no terceiro jogo, o extra. O time feirense também encarou três vezes os cearenses. No primeiro jogo, em 17 de outubro de 1964, na Bahia, deu Touro do Sertão: 2 a 1, com gols de Carlinhos e Dedé. William descontou para o Vozão. A escalação do Fluminense: Mundinho; Misael, Hilton e Si

A loja com aroma personalizado de carne

  Foi semana passada, à tarde, pouco depois da chuva que caiu sobre o centro da Feira de Santana, ali na Senhor dos Passos. Chuva forte, súbita, as poças se acumularam sobre o asfalto, sobre as calçadas. Depois veio o sol, a luz se refletindo sobre as tênues lâminas d'água. Pois então surgiu o sujeito, galhofeiro contumaz, irreverente, gozador incorrigível. Respondeu, solene, ao cumprimento, informou desde já que tomara juízo, era sujeito sério agora, abandonara a pândega, a zoeira. Mais: tornara-se empresário, gastara a vida à toa e, agora, desenvolvera aptidão para ganhar dinheiro. -Vou ganhar muito dinheiro neste trimestre agora! Ressabiado com sua zombaria habitual, aguardei. Ele, de lá, examinava-me, o olho perscrutador. No fundo, uma indisfarçável ponta de ironia. Ansioso, foi logo desfazendo o silêncio, não era de perder tempo com suspense: -Vou 'enricar' na campanha eleitoral vendendo camiseta de Jair Bolsonaro. Muita gente se deu bem em 2018. Pois eu vou me dar

Energia da morte tensiona ambiente eleitoral

  Às vezes dá vontade de ignorar inteiramente os temas políticos. Adotar uma deliberada atitude de alienação. Mas é difícil. Não apenas pelo hábito, consolidado desde a adolescência, de acompanhar o noticiário político, mas sobretudo por conta dos horrores recentes, que se sucedem, intermináveis. O último deles – o assassinato do dirigente petista Marcelo Arruda durante a própria festa de aniversário, no interior do Paraná, por um fanático bolsonarista – mostra, novamente, que o Brasil flerta com uma guerra civil no curto prazo. Não é de hoje que se nota, por aí, lunáticos de extrema-direita dispostos a tudo. Inclusive a promover um banho de sangue, em nome sabe Deus do quê. Não, talvez o diabo é que saiba, embora a maioria dos fanáticos alardeie que é cristã, conservadora, movida pela fé. Exatamente como o assassino que entrou em ação no Paraná, começando a escalada de violência que marcará as eleições presidenciais. Pesquisas indicam que muitos jovens gostariam de ir embora do Bra

Uma carta extraviada de Rubem Braga

  Mais de uma vez já declarei que sou fã juramentado de Rubem Braga, um dos maiores expoentes da crônica no Brasil. A admiração é antiga: num livro escolar – era de Língua Portuguesa – na remota sétima série, deparei-me com uma crônica do “Velho Braga”, como os amigos o apelidaram. Era “Recado ao Sr. 903”. Li-a muitas vezes ao longo do ano letivo, em inesquecíveis manhãs de sol. Naquele tempo, já era refém de certa disposição para a escrita. Embora ainda não soubesse definir – tinha só 13 anos – a profunda poesia daquela prosa me encantou. Adulto, aqui ou ali fui adquirindo livros, consolidando a admiração, que só aumentou ao longo dos anos. Nas andanças da vida visitei muitos sebos e, em alguns deles, encontrava uma ou outra publicação mais rara. “Crônicas do Espírito Santo” e “1939: Um episódio em Porto Alegre” são alguns títulos que encontrei ao acaso, em São Paulo, em Porto Alegre. As maravilhosas possibilidades oferecidas pela Internet reforçaram essa afinidade. Pesquisando aqui

Digressão sobre os nevoeiros feirenses

  Oprimido pelo nefasto noticiário, matutei. Por fim concluí que, às vezes, é bom desenvolver uma fixação qualquer. Sei lá, alguma coisa que absorva, que exija dedicação contínua, que demande tempo, que distraia, que areje. Depois de alguma busca – tudo muito aleatório, sem grande lógica, é bom ressaltar – resolvi investir nos nevoeiros, nessa neblina que envolve parte das manhãs feirenses no inverno. Sumiram nos últimos dias, reapareceram hoje, mas em junho foram bem intensos. Reconheço que descrever nevoeiros é extravagante: quem navega pela Internet é pragmático, quer o noticiário útil, muitos desejam aprender a ganhar dinheiro, outros almejam emocionar-se com relatos de superação, com arrepiantes testemunhos religiosos ou, então, buscam o mero entretenimento. Mas, mesmo assim, insisto nesta divagação. Numa manhã do fim de junho, por exemplo, a névoa foi se encorpando no começo da manhã. Sob as primeiras luzes da alvorada, parecia contida, comportada: restringia-se aos cumes dos e

A holandesa em Cachoeira

  Aqui da Feira de Santana não ficaram impressões marcantes: a sólida vocação rodoviária; o asfalto, o turbilhão de veículos, o trânsito caótico; o verde escasso, a pouca sombra que espanta precariamente o calor, mesmo no inverno; o emaranhando de placas, paineis, banners, coloridos, apelativos, poluidores; a azáfama comercial, quase palpável, que tensiona a atmosfera; sobretudo a malha urbana que se espicha – longa, plana, sufocantemente horizontal – esmagando, com seus tentáculos, a Caatinga e a Mata Atlântica das cercanias. A BA 502 despertou sentimentos contraditórios: a buraqueira na pista, a poeira às margens da estrada, as fachadas descoradas, tristonhas, das empresas, a desolação dos depósitos, dos galpões industriais, a lufa-lufa nas oficinas mecânicas, nas borracharias, nas lojas de auto-peças, nos bares e restaurantes com suas placas vermelhas, amarelas, chamativas. Mais adiante, porém, bucólicas comunidades rurais – coloridas pelas festivas bandeirolas juninas – ostentav