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Recordações de uma viagem a Teresina

A viagem era longa e o ônibus ainda atrasou. Quinta-feira à noite. Na rodoviária, os viajantes se moviam como espectros. A luz elétrica pálida, tristonha, agônica, assustava pouco a escuridão. E realçava aquela inexplicável melancolia das rodoviárias, dos pontos de apoio, dos minúsculos pontos de embarque. Quem, ali, também embarcaria para Teresina? Entretive-me com o jogo de adivinhar destinos dos viajantes. Grandes valises forneciam pistas.
– Engarrafamento na saída de Salvador – justificou o atraso, lacônico, o motorista, que examinava os bilhetes dos passageiros ansiosos pelo embarque. Misturaram-se àqueles que vinham de Salvador.
Nova parada na Avenida Contorno. Ali, tudo é mais lúgubre, escuro, deserto. O longo balcão da lanchonete na penumbra. Lá fora, vida só na barraquinha que vende tralhas chinesas. Caneta colorida, despertador, rádio, lanterna, tudo que reluz, que é multicor. Aquilo ajudava a espantar a escuridão e a melancolia.
A algazarra dos músicos espantava a silenciosa penumbra na BR 116 Norte. Havia músicos no ônibus. E minuciosos relatos de farras homéricas em condomínios do litoral norte; a piscina e o uísque, o luxo e o conforto dos bangalôs. Quem contratava? A burguesia endinheirada. Sempre comida farta, bebida à larga...
– Nem tava a fim, não. Senão ‘encarcava’ o dente e só saía de lá na lama.
O mais loquaz explicava, à sua maneira, por que rejeitou o convite para uma farra. Não estava a fim de beber, tinha compromisso em Salvador. Sorriso permanente, o jeito malandro da periferia da capital. O papo refluiu até o ponto de apoio em Capim Grosso. Grandes lembranças de manhãs e tardes radiosas ali, nas inesquecíveis viagens da militância estudantil.
– Frio da desgraça...
Um passageiro resmungava, às três da madrugada, na rodoviária de Petrolina. À distância, a silhueta de edifícios modernos, símbolos do agronegócio próspero. Na plataforma, os letreiros luminosos dos ônibus feriam a obscuridade: “Goiânia”, “João Pessoa”, “Fortaleza”, “Salvador”. Contíguos às bilheterias, boxes minúsculos vendiam ferventes caldos de mocotó, de feijão, antídoto contra a fome e o frio.
No espinhoso sertão pernambucano, as primeiras cores da manhã tangeram a lua cheia que despejou, madrugada afora, uma luz leitosa sobre os infindáveis juremais. Quando o ônibus alcançou a poeira pálida das ruas de Patos do Piauí, o sol dispersava os cirros na borda do céu. No acanhado ponto de apoio, coxinhas saborosas como aquelas das padarias paulistanas.
– É muito mais saudável que comer aí fora...
Eram os músicos. Despertos da noite de sono, dedicavam-se a devorar um previdente estoque de sanduíches. A banda ia se apresentar no interior do Maranhão; dois shows, naquela sexta mesmo; e no sábado; nem ficariam em Teresina: iam reembarcar no fim da tarde, enfrentando mais quatro horas de viagem; um deles – experimentado naquele percurso – preocupava-se, temendo atrasos; “Hoje meia-noite a gente tem que subir no palco”, recordava, sempre.
Jornada dura: qual o cachê? Provavelmente pouco, a banda de arrocha tentava emplacar tocando no interior remoto do Maranhão. Somando toda a viagem, umas 32 horas ininterruptas de trabalho. “Perdi as contas de quantas vezes fiz essa viagem”, mencionava, sem gabo, o mais experiente.
Um cearense me explicou que, no entorno de Picos, prosperavam fábricas de doces. A água é abundante no subsolo e, nas cercanias, proliferam pomares. A poeira na rodoviária reluzia. Construção imponente, arejada, com uma dezena de boxes. Biscoitos e doces à venda. Quem fuma, beberica o cafezinho vendido ali, examina entediado os taxistas ansiosos. Nas ruas próximas, construções inacabadas, muita poeira sob o sol inclemente.
Viajantes atentos notam que, à medida que se avança pela BR 316 em direção ao norte, a vegetação muda, sutil. A caatinga – com seus espinhos e suas plantas avaras – cede a uma paisagem que se assemelha ao cerrado. Troncos esguios, mas com copas mais fartas, cipós e plantas rasteiras sinalizam que, ali, finda a clássica caatinga. Quando o ônibus para num ponto de apoio no alto de uma colina, nos limites do município de Elesbão Veloso, o viajante já mergulhou naquele bioma.
– Dispensei a carne. Com aquele nervo, aquilo ali pra mim não é churrasco. Dispensei a carne.
Quem resmungava era o músico loquaz, indignado com a carne disponível nos espetos. Cadeiras de espaldar alto e mesas solenes, de madeira, toalhas brancas recobertas com plástico transparente: típico restaurante de beira de estrada. Ao fundo, um vale, colinas íngremes; dezenas de galinhas cacarejavam incessantemente, espalhadas pelo terreiro imenso, enfeitado por uma mangueira imponente, antiga, sisuda.
Dali até Teresina o sol declinou lento, radioso, no típico compasso setentrional. Aliviados, os músicos impacientavam-se, enquanto o ônibus avançava pelas avenidas largas e pelos viadutos da capital do Piauí. Tinham, adiante, mais quatro horas de viagem até o interior do Maranhão...

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