“Antigamente,
os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, para
ganhar a eternidade. Ilesos, vestiam roupas contaminadas, queriam morrer da
peste. Esse furor não é recomendável: antes indica lastimosa precipitação,
vizinha do orgulho. Não devemos ser mais apressados que Deus, e tudo o que
pretende acelerar a ordem imutável, para sempre estabelecida, conduz à
heresia”.
O
texto acima é de “A Peste”, do escritor franco-argelino Albert Camus. Trata-se
do trecho em que o padre Paneloux faz um sermão. Esta personagem, adiante,
sucumbe à peste bubônica. O romance se passa em Oran, importante cidade
portuária argelina. Aproveitei a pandemia de coronavírus para reler a obra e enxergar
semelhanças com o momento que o Brasil atravessa.
O
surreal pronunciamento de Jair Bolsonaro, o “mito”, terça-feira (24) à noite, conduziu
a memória ao trecho. É que, nele, tudo recende a morte, a mesma disposição
necrófila que o contestado mandatário exibe desde a campanha eleitoral.
Retomar, neste momento, a “rotina normal” – ou vestir roupas contaminadas – é
um impulso de morte, não de vida.
A
morte – ou a necropolítica, conforme uma feliz definição – é o que move o
governo do “mito” desde o começo. A liberação do porte de armas, a licença para
as polícias matarem, a cruel redução de recursos em áreas cruciais como saúde e
a assistência social, o descaso pelo meio-ambiente, tudo evidencia o impulso
para a morte – o triunfo do Tanatos –
no novo regime.
Felizmente
as reações mostraram que pouca gente comprou o discurso insensato do “mito”. E
as pessoas se mantêm em casa, prudentemente. Nem mesmo os acólitos dessa seita
profana aventuraram-se pelas ruas, atendendo à delirante convocação. Neste
momento, prevalece o instinto de autopreservação.
Aqui
na Feira de Santana ontem houve mais um dia de isolamento. Aqui ou ali, alguém
comentava, espantado, o discurso inacreditável da noite anterior. Não foi
incomum ouvir impropérios contra o “mito”: beneficiado por uma robusta estrutura
de saúde, tem pouco o que temer em relação ao seu bem-estar.
–
Já a população... – Comentou um frentista no início tranquilo da tarde.
Outros
questionam a sanidade do “mito”. Aliás, isso está se tornando muito comum,
sobretudo na imprensa. Não é preciso muito esforço para ficar desconfiado:
basta acompanhar um pronunciamento qualquer, uma dessas entrevistas arranjadas
por apresentadores babosos, mesmo dois dedos de prosa no “cercadinho” do
Palácio do Planalto.
Uma coisa puxa a outra: não
me sai da cabeça, também, o título de um romance do escritor mineiro Fernando
Sabino, lançado em 1979: “O grande mentecapto”. O tempo passou, mas temos outro
Viramundo aí na praça, pelo visto...
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