É
necessário reconhecer que o isolamento social imposto pela epidemia de
coronavírus oferece algumas – poucas – vantagens. Uma delas é a reaproximação –
para quem aprecia os bons livros – da literatura. Na rotina normal é necessário
esforço para manter os vínculos com os grandes autores: o trabalho, o trânsito,
o convívio social, as aporrinhações do cotidiano, tudo isso impõe um pesaroso
distanciamento. Com algum tempo disponível, é possível reatar esses laços.
Meses
atrás gente consagrada da literatura brasileira foi alvejada por uma
controversa medida do governo de Roraima: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário
de Andrade – entre outros grandes escritores – figuraram numa index da Secretaria
de Educação daquele estado. O escândalo – felizmente medidas do gênero ainda repercutem
muito mal – abortou a iniciativa. Mas é bom ficar atento.
Lembro
de uma piada antiga, que circulou durante a ditadura de Getúlio Vargas, lá em
meados dos anos 1930: um obtuso censor impediu a publicação, num jornal, de um
trecho do Sermão da Montanha. O autor do célebre discurso? Ninguém menos que
Jesus Cristo. A anedota – alguns afirmavam que foi fato – atestava a indigência
intelectual de quem pelejava contra o universo das letras.
A
pitoresca index laica lá de Roraima alveja Euclides da Cunha – ironicamente “Os
Sertões”, em muitos trechos, exalta o Exército, que conduziu aquele massacre –
e Machado de Assis, coitado, que sempre manteve distância prudente de controversas
questões sociais. É provável que a censura ao “Bruxo do Cosme Velho” se devesse
mais à sua linguagem rebuscada – para os grosseirões da extrema-direita – que
às suas sofisticadas incursões psicológicas, inacessíveis a eles.
Pois
bem: confesso a posse não apenas de “Os Sertões”, como de parte da prolífica
produção machadiana. Vício antigo: aqui ou ali é bom revisitar a jornada de
Euclides da Cunha pelo inóspito sertão baiano ou imergir nas intrincadas
análises psicológicas de Machado de Assis, com sua literatura aparentemente
rósea para os pouco sofisticados.
Lê-lo
provoca prazer redobrado a quem se aventura pelas ruas do centro antigo do Rio
de Janeiro. Quem, leitor do “Bruxo do Cosme Velho”, envereda indiferente pela rua
do Ouvidor, pela rua da Quitanda, pela Lapa? Prenhes de História, aquelas
artérias estão também impregnadas do espírito de Machado de Assis.
Por
enquanto, ninguém se arvorou a ampliar a index, estendê-la para o Brasil
inteiro, adotá-la de fato. Então, durante o inevitável isolamento, é bom
devassar a bela literatura brasileira, conhecer seus grandes autores, não temer
se perder e, lá adiante, se achar novamente.
Aqui há o hábito mesquinho
de desmerecer as grandezas de fato que o País produz. Gente como Euclides da
Cunha, Machado de Assis e Mário de Andrade figuram – com certeza – no rol dos
grandes brasileiros. Merecem toda a reverência e, sobretudo, a leitura e a
releitura de sua inestimável contribuição.
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