O
Bom Pastor regalou-se com o churrasco do Mercado do Porto na manhã seguinte.
Mastigava, cúpido, os olhos lacrimejando. Só refugou a batata rústica, exótica.
E o feijão? E o arroz? Não estavam à disposição. A farinha de mandioca ele até
entendia, mas o prato sem feijão alarmava-o. Mesmo assim, mastigava a carne com
gula incontida. Depois, permitiu-se um vinho, aquela bebida era bíblica.
Valente, entornou duas taças e uma névoa azulada diluiu os restaurantes em
volta, os animados comensais.
Percorreu
a longa calle Sarandi no começo de
tarde com sol preguiçoso. O silêncio se impunha e só o esporádico rumor das
asas dos pombos quebrava-o. À distância, via as torres da igreja de São Pedro,
adivinhava as copas das árvores na praça, o voo incessante dos pássaros. Aquela
quietude, os sobrados antigos, a sensação de conforto após a refeição e o
transe suave do vinho não o acalentavam: tudo era estranho, estrangeiro e seu
espírito refugava tudo.
–
A Intendência de Montevidéu é um prédio magnífico!
Decidiu
conhecê-la, aproximava-o de sua rotina provinciana. O edifício avermelhado,
moderno, de muitos andares, surpreendeu-o: imaginava-o semelhante à prefeitura
de sua cidade sertaneja, cujos degraus desgastados sonhava subir como prefeito.
Aquilo intimidava, espichando-se contra o céu cinza, reduzindo os visitantes a
uma proporção mesquinha. Intimidou-se, mas, no hall, examinando uns cartazes,
tentando adivinhar o sentido daquelas palavras, gastou um tempo.
Passava
gente – branquelos, olhos claros, cabelos claros – mas muito diferente daquela
a que se acostumara. Falavam rápido, naquele idioma exótico. Encrencara-se mais
cedo, no salão do café da manhã; depois, enganchara-se tentando comprar umas
lembranças, que chamavam recuerdos.
“É torre de Babel, torre de Babel”, espantava-se, recordando a referência
bíblica.
Espanto
mesmo veio depois: à direita, na bifurcação de duas avenidas, surgiu uma
marcha. Cartazes, palavras de ordem, multidão. Estarreceu-o porque, ali, a
maioria era mulher. Não entendia o idioma, mas, catando palavras dispersas,
deduziu que aquilo era uma marcha, repudiavam a violência contra a mulher. Mais
ainda: havia um dia, o 25 de novembro. Nunca imaginara isso! Havia muitas
mulheres, havia milhares de mulheres.
O
torpor do vinho, que se arrastava, o frio que gelava suas orelhas, o vozerio
incompreensível e um renitente cheiro de mato queimado confundiam-no,
desorientavam-no. Que mato era aquele? Aquilo era incenso?
–
Marijuana!
Quando
soube que aquilo era maconha, o Bom Pastor atarantou-se. E a polícia? Cadê viatura?
Que balbúrdia era aquela? Riram, ali era permitido! Aí o edil encostou-se a uma
coluna, fios de suor brotaram na sua testa. Como era? O governo autorizara,
fumar maconha era legal. O olho percorreu as fachadas dos prédios próximos, nem
notou o ar de zombaria da turma da agência de viagem, dos vereadores que já
entornavam cerveja ali perto. Depois veio um batuque esquisito, só com
mulheres. Lembrava o Olodum, mas só com mulher. O que era aquilo?
–
Candombe!
-
Hein? Candomblé? Só faltava essa!
–
Candombe!
A
moça enfronhou-se no ritmo, ofereceu explicações restritas. Era um batuque.
Menos mal! Mas por que só mulheres? Lá no seu sertão aquilo era inconcebível.
Mulher em batuque, desenvolta, feito homem. País estranho aquele! A tarde ia
caindo, o céu encoberto era tristonho. Mas, naquele pagode, ninguém parecia
triste. Circulou um pouco, estava perto do hotel, não ia se perder. Foi então
que viu um magote de mocinhas.
–
Bebendo cerveja de litro no gargalo, fumando cigarros finos de maconha, com as
pernas de fora!
Compartilhavam
a cerveja e o baseado: uma tragada e o cigarro seguia adiante; um gole curto,
idem. Ficou indignado, lembrou da filha, tinha a idade daquelas meninas. Tudo
perdido, aquele país estava se degenerando. E ali, desde a manhã, praticamente
não vira igrejas! Sodoma e Gomorra! Babilônia! Não fossem as diárias polpudas,
desfaria o compromisso com aquele curso, retornaria no primeiro avião!
Decidiu
voltar ao hotel, andando rápido, porque o frio aumentava. Não via o
lusco-fusco, os álamos, a luz dos postes em círculos concêntricos. Via era o candombe, as mocinhas naquela farra,
naquela degeneração. No quarto, ligou a tevê, mas não encontrou canais
religiosos. Lá fora o dia estertorava sob o céu cinza, os ruídos chegavam
distorcidos, distantes. Maquinalmente, abriu o frigobar. Lá repousavam latas de
refrigerantes, batatas, chocolates, cerveja... Patrícia, a mesma cerveja que as
mocinhas bebiam no gargalo.
Foi
dormir com o gosto da subversão, da dissolução, do comunismo, na boca. Sonhou
com uma confusa multidão de mocinhas – macias, desejáveis, olhos de promessa –
perseguindo-o pelas ruas de Montevidéu...
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