–
E o presidente, hein?
O
outro até tentou escapar. Mas o interlocutor alcançou-o com pernadas vigorosas.
Praticamente deslizara sobre os bloquetes do piso intertravado da Sales
Barbosa. Então ele espichou o olhar, aflito, à espera de uma hecatombe qualquer
que interrompesse aquele papo, sob o chuvisco miúdo, o céu londrino. Mas a
hecatombe não veio. O jeito foi se conformar. Esperou.
–
Rapaz... o que é que está acontecendo? Você aí desanimado, meio caído. Fique
assim, não. Quero você altivo como era, defendendo o homem, gritando que ele é
incorruptível, xingando os comunistas pelas esquinas, chamando-os de ladrões,
de esquerdopatas.
–
Olha, tô meio apressado...
–
É coisa rápida. Homem, tudo isso é coisa dos comunistas, não acredite, não.
Estão fazendo o diabo pra prejudicar. E não são só os comunistas da imprensa,
os ambientalistas, o pessoal das universidades, essa turma manjada, não. Tem
mais conspirador...
Aí
aproveitou para sussurrar, mesmo com a Sales Barbosa quase deserta:
–
Andei pesquisando essa coisa de comunismo. Tem comunista até disfarçado de
empresário, de banqueiro, em jatinho, iate, lancha, ilha particular. Tudo para
insuflar o povo, deixar revoltado. Querem que o povo não acredite na
meritocracia, pare de se esforçar. Estratégia contra nós, os anticomunistas...
–
O papo tá bom, mas...
–
Aí ficam dizendo que o povo está insatisfeito. Conversa! Quem é que não suporta
ficar uns meses sem comer carne? E o botijão de gás, que falam que está caro? É
bom treinar sobrevivência na selva, aprender a fazer fogueira, igual aos
militares. Energia elétrica, então, nem se fala: bom enfrentar dificuldade, vai
que pipoca uma guerra contra os comunistas? O povo está satisfeito, está
preparado, comendo pouco, com disciplina militar!
–
Se eu demorar muito, o banco fecha!
–
Tá vendo aí? Vai em banco, tem grana pra gastar. E o povo falando em crise. A
imprensa distorcendo tudo. Vá lá na Zona Oeste do Rio de Janeiro para ver se o
pessoal não está se esforçando, prosperando. É uma modalidade nova de
empreendedorismo, o bélico. E o pessoal que está indo na tal CPI? Cabo da
polícia, reverendo, subindo na vida, vendendo vacina. Coisa de quem se esforça,
enxerga longe. Visão empresarial! É isso: visão empresarial!
–
Vamos marcar uma conversa pra depois da pandemia...
–
O quê? Quem era você! Cabra retado, andava sem máscara. Agora aí, com medo da
“gripezinha”. Sinceramente! Noutro tempo, estaria lá debaixo dos oitis do
Estacionamento da Prefeitura, conclamando o povo para defender o homem. Agora
está aí. Daqui a pouco está com o discurso de que político é tudo igual, tudo
ladrão, que nem os isentões!
–
Pois bem: é exatamente isso. Pra mim, político é tudo ladrão, não tem um que
preste. Até a próxima. Passe bem!
E
saiu cuspindo fogo, meio curvo, cabelos esbranquiçados pelo chuvisco. O outro
ficou. Examinava o que se afastava com um riso malévolo no canto dos lábios...
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