“Um contemporâneo queixou-se
de que as ruas de Salvador ‘se acham atulhadas de negras vendedeiras [...] que
impedem o uso público aos moradores’”.
Não,
a frase não é recente. Aplicou-se à Salvador da década de 1830, quando as ruas
da Cidade da Bahia povoavam-se com uma multidão de vendedoras que iam de porta
em porta ou fixavam-se com tabuleiros e esteiras, comercializando boa parte do
alimento que o soteropolitano consumia. Escravas, alforriadas, africanas ou já
naturais da Bahia, essas mulheres – quase todas negras e analfabetas – foram
pioneiras naquilo que, hoje, batiza-se como empreendedorismo. Seus esforços
contribuíram para garantir víveres à população que, até então, não dispunha de
um mercado para adquiri-los.
A
saga dessas mulheres – havia homens também, mas eram poucos – está na obra
“Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador
1780-1860)”. O brasilianista Richard Graham, professor da Universidade do
Texas, é o autor. O texto fluido da tradução é um dos atrativos da obra, que resgata
aspectos históricos da capital baiana com muita riqueza, privilegiando sua
fervilhante rotina comercial.
Naqueles
tempos, Salvador limitava-se à Cidade Baixa – basicamente o atual bairro do
Comércio – e à faixa que se estende do Santo Antônio Além do Carmo ao Campo
Grande. Nas artérias enlameadas, esburacadas e sem pavimentação, moviam-se as
vendedeiras, oferecendo de tudo com seus pregões. Mais tarde, até mesmo o
aristocrático Corredor da Vitória – então fronteira de expansão urbana em
direção ao sul – foi tomado pelo comércio de rua, conforme se vê:
“Em certa época, a venda de
carne fresca, peixe e aves domésticas na elegante avenida Vitória só era
permitida em ‘cabeças de ganhadeiras’, porque os moradores não queriam que seu
trânsito pelas ruas fosse estorvado por barracas ou esteiras espalhadas pelo
chão”.
Obviamente,
os serviços prestados por essas mulheres eram essenciais à vida da cidade. Mas
a proximidade incomodava a elite, claro. Havia, desde sempre, pressão contra a
presença das vendedeiras. É o que se observa no trecho seguinte:
“Aliás, para o desespero dos
amantes da ordem, as vendedoras estendiam suas esteiras até mesmo junto à
imponente entrada da câmara municipal, ao lado dos muitos mendigos da cidade”.
Mais
à frente foram se consolidando as feiras-livres, ergueram-se entrepostos
comerciais – o famoso Mercado Modelo é um deles – e o movimento pelas vias da
Cidade da Bahia diminuiu. Mas jamais se extinguiu de todo: mesmo hoje, ali na
Barra ou na Graça, é possível ver gente mercadejando, com seus pregões e sua
clientela cativa. Domésticas, zeladores e porteiros costumam fazer a mediação
com quem se aventura obtendo seu sustento nas ruas. Isso para não mencionar a
óbvia presença de camelôs e ambulantes no Centro Antigo.
Será
que a Feira de Santana também teve suas vendedeiras de rua nos seus primórdios?
Eis uma dúvida. Havia a pujante feira-livre que movimentava o acanhado espaço
urbano desde meados do século XVIII, consolidando-se na primeira metade do
século XIX. Na feira-livre talvez os feirenses adquirissem todos os víveres
necessários para a semana. E o município sempre foi mais rural que a capital,
sobretudo naqueles tempos, o que assegurava certa autossuficiência. Havia,
também, menos recursos à disposição, a população era pobre. Talvez esses
fatores tornassem as vendedeiras desnecessárias.
Mesmo
assim, a Feira de Santana atravessou dois marcantes processos de ordenamento
urbano. O primeiro com a construção do Mercado Municipal, inaugurado há pouco
mais de 100 anos com a promessa de centralizar a comercialização de gêneros
alimentícios. Depois, já na década de 1970, veio o Centro de Abastecimento com
a mesma promessa renovada. Em ambos, prevaleceram reclamações sobre bagunça,
sujeira e desorganização para justificar a remoção.
Há,
agora, o movimento mais recente que relocou camelôs e ambulantes para o
festejado shopping popular, esvaziando as ruas do centro. No noticiário,
nota-se a insatisfação de quem foi para o entreposto, na mesma área do Centro
de Abastecimento. Até manifestação defronte à prefeitura já houve. E, por
enquanto, as autoridades reagem com um silêncio bem eloquente.
Quem
se debruça sobre a História, sabe as voltas que ela costuma dar. Será que as
insatisfações recentes indicam já uma primeira curva no caminho, poucos
momentos depois da mais uma largada? Isso só o tempo dirá...
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