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Com crise ou não, carro do ovo veio para ficar

Muita gente comprou carro no Brasil durante o soluço de prosperidade que se estendeu do final da década passada até meados de 2014. Vários fatores contribuíram para o fenômeno: a redução ou isenção de impostos, os parcelamentos em até 72 meses, o aumento transitório na renda, o péssimo transporte público e a fantasia do automóvel como símbolo de status e de ascensão social. Até integrantes da badalada classe C, recém-incorporados ao circuito do consumo, se habilitaram, apostando que aquela prosperidade seria duradoura.
O fenômeno, todavia, foi efêmero e desembestou na crise que se arrasta até os dias atuais. Esse engasgo econômico produziu milhões de desempregados, comprimiu renda, enxugou lucros e desestimulou investimentos. Milhares deixaram de pagar prestações de carros e imóveis por causa do desemprego e perderam seus bens. Outros apelaram para o uso produtivo desses ativos – às vezes criativo – para contornar o prejuízo.
Foi o caso, por exemplo, de quem perdeu o emprego, mas manteve o veículo transportando gente via aplicativos de transporte. Quem se aventurava na atividade como biscate, em muitos casos, passou a se dedicar em tempo integral. Cai a renda, aumenta o desgaste do veículo, mas evita-se o mal maior, que é a perda do bem por inadimplência. Afinal, perde-se, com ele, o valor já pago.
Além de transportar passageiros, há quem invista na comercialização de produtos. Alguns – normalmente em utilitários ou em modelos mais antigos – circulam pelas ruas das cidades apregoando mercadorias diversas. Outros transportam seus produtos para onde aflui muita gente e, ali, promovem uma feira-livre improvisada. Nesses locais, encontra-se praticamente de tudo.

Carro do ovo

O símbolo desses tempos, porém, é o carro do ovo. Foi ele o pioneiro a se multiplicar Brasil afora – as periferias constituem palco privilegiado, mas eles circulam também por regiões mais abastadas e até em áreas nobres – e traduzem esses tempos atrozes com precisão singular. Surgiram aí por volta de 2015 – quando começava essa terrível recessão – e, imediatamente, caíram no gosto popular.
Ovo sempre foi produto estigmatizado: é ele que, tradicionalmente, ornamenta a refeição do pobre, que nem sempre dispõe de proteína animal no prato para combinar com o feijão, o arroz ou a farinha. Ninguém pesquisou, mas nesses tempos de desemprego galopante, queda alarmante na renda e revogação de direitos sociais, o brasileiro – e o feirense, em particular – deve estar recorrendo mais ao ovo nas refeições.
O trânsito frequente dos “carros do ovo” pelas ruas da cidade é um sintoma dessa preferência forçada. Há quem venda, além de ovo, produtos adicionais como farinha ou mel. A comodidade e o preço – ainda são vendidos 40 ovos por R$ 10, embora já se encontre a preços mais elevados – cativam a clientela, que nem precisa se deslocar para adquirir o produto de manuseio delicado.
Há quase dois anos alardeia-se, sem cessar, a retomada do crescimento econômico. É empulhação: a informalidade, o subemprego e a desocupação estão aí, bem visíveis, para desmentir as frequentes mentiras. É claro que, em algum momento, a economia vai voltar a crescer de maneira consistente. O problema é que essa precariedade, pelo visto, veio para ficar.
Portanto, é bom ir se acostumando com a presença permanente de camelôs e ambulantes – inclusive aqueles motorizados carros do ovo – pela paisagem urbana. Com ou sem crise.

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