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A vitória de Tanatos

- Não tem um homem com autoridade para governar esse País, rapaz. Só tem ladrão.
O inconformado trajava uma surrada bermuda escurecida pela graxa e uma camiseta verde, dessas de bloco de Micareta. Gesticulava, agitado, esticando o braço direito, muito queimado de sol. Defendia alguns trocados fazendo bico como borracheiro ou ajudante de mecânico.
A pregação era numa daquelas biroscas ali nas imediações do Cemitério Piedade. Ambiente vulgar: marmanjos de bermudas e chinelos de dedo, esvaziando minigarrafas de cerveja em copos americanos ou encarando cachaça com ervas aromáticas em copos plásticos. Ouviam-no distraídos, mas havia quem concordasse.
Noutra ocasião, num daqueles restaurantes minúsculos em um dos becos do centro da cidade um lavador de carros despejava, generoso, a farinha grossa sobre o prato-feito que ele se preparava para devorar. Um sorriso indiferente despontava sob o bigode farto enquanto o interlocutor – comerciário numa loja minúscula de acessórios de som – doutrinava:
- Bandido bom nem é bandido morto. É bandido desaparecido, porque aí nem tem corpo para provar nada...
Num terceiro momento, no Centro de Abastecimento, dois tabaréus esvaziavam uma garrafa de cerveja enquanto esperavam condução e apuravam as novidades. Gente passava, pardais chilreavam, aparelhos de televisão ligados exibiam aqueles programas matinais de culinária:
- Não tem é policiamento. Vagabundo faz o que quer. Hoje a gente vive escondido e bandido vive solto – lamentava o mais velho, que vestia um gibão surrado sobre a reluzente camisa vermelha. Ambos seguravam bocapios com dedos calosos.
Essas sentenças estão aí, no ar, há muito tempo. Aliás, no Brasil, desde que o extermínio começou a crescer à sombra do Estado, nunca deixou de encantar alguns, mais exaltados, que defendem em público essas atrocidades. Isso sem grande contestação: quem discorda, se cala, sob o receio de ser taxado de “defensor de bandido” ou – o que é ainda pior nesses ásperos tempos – de ser da “turma dos direitos humanos”.
É claro que a impiedade tem alcance limitado: restringe-se à ladroagem pobre, analfabeta e favelada, àqueles que tomam aparelhos eletrônicos – sobretudo celulares -, bolsas e carteiras. Limita-se, também, às incursões sobre os bens privados: aqueles que investem contra os cofres públicos contam com tácita aquiescência, quase aprovação:
- Só tem ladrão. Não tem jeito, mesmo.
Sonegadores, corruptores – a bandidagem do “colarinho branco”, como se dizia antigamente – não figuram nessas vituperações. Ao contrário: caso apareçam como candidatos nalguma eleição, são tratados com rapapés e gentilezas redobradas. Quanto mais rico, maior o respeito pela candidatura, mais solenes são os juízos sobre suas possibilidades de sucesso. Há até quem arrisque elogiar seu senso de fortuna.
Essas personagens iracundas devem estar exultantes com as eleições recentes. Afinal, quem não se esmerou nas ameaças aos bandidos, quem não defendeu o endurecimento da legislação, quem não prometeu bala para quem orbita fora da ordem foi esmagado pelo eleitorado sedento de sangue.
Quem emerge dessas eleições como o grande vitorioso é Tanatos, a personificação da morte na Mitologia Grega e, na perspectiva freudiana, a pulsão da morte.

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