Eles
começam a chegar aos antigos e aristocráticos bairros de Salvador nas primeiras
horas da manhã. Invariavelmente desembarcam de ônibus cujos letreiros luminosos
sinalizam origens longínquas: Pau da Lima, Mussurunga, Santa Mônica ou Fazenda
Grande do Retiro. A afluência, porém, é maior do distante Subúrbio Ferroviário,
com suas dezenas de comunidades carentes: Mirantes de Periperi, Paripe, Coutos,
Fazenda Coutos, Lobato e os mais próximos: Marechal Rondon, Capelinha de São
Caetano e Alto do Cabrito. Boa parte dos veículos traz o amarelo da frota que
circula naquela região.
Eles
são os trabalhadores que ganham a vida nos bairros nobres de Salvador, labutando
nos edifícios elegantes onde reside parte da elite local. São empregadas
domésticas – o tipo mais comum naquelas levas que desembarcam a todo momento no
início da manhã – faxineiras, copeiras, babás, cuidadoras de idosos: as
mulheres predominam naquele universo.
Entre
os homens pontuam os porteiros, jardineiros, ascensoristas, eletricistas,
montadores de móveis, encanadores, pintores e pedreiros, além de biscateiros
que encaram qualquer tarefa em troca de remuneração módica – o popular “agrado”
– nesses tempos de feroz retração econômica. Boa parte flutua pela metrópole:
prestam serviço aqui ou ali, dependendo da demanda.
A
movimentação dessa gente – ali do Campo Grande à Barra, incluindo o Corredor da
Vitória e a Graça nesse circuito – começa logo cedo, quando desembarcam dos
ônibus suburbanos. E se estende ao longo do dia: fazem compras miúdas nos
minimercados, padarias e açougues; acompanham idosos abastados com dificuldade
de locomoção; levam e trazem crianças de pele, olhos e cabelos claros; e,
sobretudo, passeiam com os cães graciosos que os moradores das cercanias
apreciam criar em seus apartamentos espaçosos.
Avulsos
Esses
trabalhadores estão disponíveis para atividades contínuas que se renovam no
dia-a-dia. Mas existem aqueles que prestam serviços complementares: nas manhãs
de sábado jovens negros passam vendendo mariscos pelo Corredor da Vitória:
avisando na portaria, reserva-se o camarão, a lagosta, o siri catado para a
refeição do final de semana, sem precisar sair de casa.
Os
indefectíveis carros do ovo também circulam por ali: além dos 30 ovos ofertados
por irrisórios R$ 10, um utilitário surrado também disponibiliza para a
clientela farinha e polpa de fruta. A estratégia é a mesma empregada noutras
regiões da cidade: o alto-falante que amplifica a voz rascante, a velocidade
baixa e a atenção para o aceno dos potenciais consumidores.
Há
concorrência: numa radiosa manhã de sábado, uma Kombi estacionou, abarrotada de
placas de ovos, atendendo a clientela dos prédios próximos. Os poucos pobres
residentes nas cercanias – há cortiços, acanhados, debruçando-se sobre a Baía
de Todos os Santos – e as dinâmicas domésticas acercam-se do veículo com
familiaridade, proseiam com o jovem vendedor.
Bicicletas
Quem
puxa plantão nas portarias costuma sentir fome: não falta, para supri-los,
hábeis ambulantes que circulam em bicicletas equipadas com recipientes
plásticos acoplados. Neles, acomodam-se banana real, pastel, sonho e coxinha
para saciar a fome de gordura dos porteiros e seguranças e das eventuais
domésticas que interrompem o passo apressado para fazer um lanche.
Uns
fazem piadas, íntimos dos porteiros; ouvem réplicas, apregoam seus produtos e,
ágeis, atendem pedidos, recebem o pagamento, passam o troco ou anotam em
cadernetas amarrotadas a conta a ser quitada mais adiante. Depois, montam nas
bicicletas e seguem lépidos para a portaria seguinte.
Paramentados,
vendedores padronizados de sorvetes e picolés vencem com passos largos a
distância que separa o centro de Salvador do Porto da Barra. Cortam caminho
pelo Corredor da Vitória, ávidos, apostando no irretocável sábado de sol.
Imaginam que a clientela sedenta vai se adensando nas areias do mar manso da
baía.
Belezas
Em
meio às tarefas enfadonhas, há quem espiche o olhar para o fundo dos prédios e
consiga sorver o azul contagiante da Baía de Todos os Santos, sobretudo nas
manhãs de céu limpo. Ali a altura empresta ao mar uma aparência de parede
exótica, que encrespa à medida que o vento agita a flor da água. Uma sensação
festiva inunda aquela gente habituada à monotonia do concreto.
À
frente, as copas das árvores encobrem o céu no Corredor da Vitória, a rua da
Graça, a Princesa Leopoldina. Aqui ou ali o vento desnuda o céu e a luz se
insinua, exibindo os átomos que doidejam, anárquicos. Mas essas tréguas,
líricas, são curtas: a atenção com o morador, o movimento repetitivo e o peso
da mercadoria restabelecem, logo, a conexão com os imperativos da vida
material.
Nos finais de tarde a
procissão se reverte, em direção às longínquas periferias. Aí há o cansaço, a
inquieta espera pela condução, a melancolia dos curtos crepúsculos na paisagem
pontuada pelo concreto, o desconforto provocado pela rotina imutável. Muitos
sonham, acordados, pelos pontos de ônibus. E espicham o olhar perdido,
mergulhados em seus devaneios.
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