Pular para o conteúdo principal

Os carcarás singrando o céu da Feira

 Às vezes chego à janela e me deparo com um carcará pousado no topo do prédio que fica defronte. É uma ave soberba, imponente, altaneira. Aprecio-o mais nos finais de tarde – com a primavera, já avisto daqui o sol de pondo, espalhando uma mancha vívida, esbraseada, lá para os lados de Jaguara – quando se lança em manobras ousadas na direção do poente. Antes do “novo normal”, via-o, às vezes, nos finais de semana, navegando com elegância pelos ares, mas o corre-corre, as agonias cotidianas, embotavam a observação.

Agora vejo-o sempre. E descubro que não vive só: noutro dia, vi quatro carcarás emergindo do prédio fronteiro, sobrevoando-o, equilibrando-se ao vento, sob o céu encardido pelas nuvens de chuva. Aquele que sempre vejo – presumo – estava entre eles. Talvez tenha sido ele próprio que pousou, com familiaridade, no lugar habitual, o cimo de uma imensa caixa-d’água. Confesso meu contentamento pueril com vizinhança tão imponente.

Às vezes, depois de descrever uma curva precisa, a ave faz um voo rasante ali para os lados da lagoa do Prato Raso. Creio que, lá, às vezes obtém alimento. Afinal, numa luminosa manhã de sábado vi-o retornando com uma presa entre as garras. Pendente, um rabo repugnante que, julgo, pertencia a uma ratazana. Depois de mais uma curva, ele sumiu nos fundos do prédio. Foi se alimentar.

Muito me orgulha ser vizinho de uma ave da família Falconidae, aquela dos falcões. Mais ainda quando se trata de um Caracara Plancus, o nosso carcará nordestino, símbolo da têmpera sertaneja. Na Inglaterra, ele tem nome solene também: Southern Caracara. Conforme mencionei, o porte me impressiona. As medidas, idem: 56 centímetros de comprimento, 830 gramas de peso e 120 centímetros de envergadura. E, apesar do tamanho, no ar, tanta graça e tanta leveza...

Descubro vasculhando a Internet que o cardápio do carcará é bem amplo: da carniça às sobras de peixes, passando por lagartixas e roedores, tudo lhe apetece. O carcará é resistente às toxinas presentes em organismos em decomposição. Não é à toa que se adapta à vida nas cidades. Surpreendi-os, algumas vezes, emitindo um grunhido que seduz pouco quem ouve. Parece mais um alerta, um aviso, uma advertência da ave terrível.

O que me encanta mesmo é o seu voo. Alça-se, com graça, às grandes alturas e, lá, mexe as pontas das asas num movimento suave, contínuo. Parece senhor dos ventos, que sopram conforme seus caprichos. Pelo menos é a sensação que dá ao observador distante que acompanha, embasbacado, da janela de casa. Aquelas aspirações infantis de poder voar retornam, intensas, quando o carcará, num movimento brusco, arremete em direção à amplidão, despertando uma inveja profunda...

A cantora santamarense Maria Bethânia, muito jovem, imortalizou o carcará com a interpretação de uma canção de João do Vale. Alguns trechos traduzem bem as sensações do observador extasiado: “É um bicho que avoa quem nem avião (...) Tem o bico volteado que nem gavião (...) Carcará é malvado, é valentão/É a águia de lá do meu sertão”. Sorrio, daqui, observando a performance do carcará no poente em chamas: estamos, de fato, bem representados aqui no sertão.

É bom começar a sexta-feira ouvindo Maria Bethânia cantando carcará. Mesmo que a sexta-feira do “novo normal” não desperte aquelas sensações libertárias que pulsavam até o começo de março...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express