Pular para o conteúdo principal

Crônica da tarde ensolarada de sábado

 Dobro a esquina da Voluntários da Pátria – nome feio, frio, cartorial para uma artéria pulsante – e ouço o ronco aflito dos motores dos veículos que sobem e o freio estrepitoso dos ônibus que descem a famosa rua que conduz ao Sobradinho. Em torno, painéis reluzentes anunciam padarias, lanchonetes, restaurantes, lojas de materiais de construção, farmácias, confecções. No céu, nuvens pardas, esparsas, insinuam chuvas que não cairão.

Caos na confluência da Avenida Canal com a rua de Aurora e com a ladeira do Nagé. Motos, ônibus, automóveis, utilitários, ciclistas e pedestres cruzando em todas as direções. Buzinas estridentes, motores resfolegando, pneus cantando, intrépidos, imprecações, vozes. Tudo abençoado pelo sol preguiçoso do fim do inverno.

Nas biroscas manchadas de poeira e óleo, cerveja quente em copo plástico, espetinhos lustrosos de frango, linguiça e carne. Gente manchada de poeira e óleo conversa aos berros, esbraveja, gesticula, ri. O arrocha estronda em caixas possantes de som, violando o silêncio da tarde de sábado.

No Nagé, a quietude aflora antigas lembranças. Papos. Risos. Alegria. As amizades que o corre-corre da vida dispersou. Fachadas se desfazem, placas de “vende-se”, um ou outro rosto familiar e envelhecido que – por um instante fugaz – resgata aquelas recordações, pungentes. Por um átimo, a adolescência pulsa no peito. Mas se esvai.

Na Froes da Mota, bêbados precoces já vociferam, indignados. Outros sorvem devagar a cerveja do sábado e a liberdade do sábado. Mais arrocha: paixão; ciúmes; desconsolo; desamparo. Pardais chilreiam e o vento balança, suavemente, as copas dos oitis. Ajudam a espantar a melancolia das lojas fechadas, dos comerciários que se afastam, apressados.

– Sobradinho, Pampalona, Asa Branca, condomínio!

É ali na Praça do Nordestino. Que condomínio? Só o cobrador que recruta passageiros – sem máscara – e os passageiros na van – sem máscara – é que sabem. Há várias vans. Na praça em obras, a turma renitente bebe seu litrinho, come seu tira-gosto, sentada em cadeiras plásticas, amarelas, das cervejarias.

Retardatários apressam-se na Senhor dos Passos, o vento indócil levanta papel e plástico sujos. Camelôs desmontam suas barracas verdes com gestos preguiçosos, lentos, burocráticos. A poeira das obras dança, doida, no ar. No ponto abarrotado da Praça do Lambe-Lambe, tapumes metálicos espremem os passageiros impacientes na calçada. Na Getúlio Vargas a malandragem transita devagar, o olho arisco.

Matinha, Candeia Grossa, São José, Jaíba. Os destinos das vans latejam em letreiros chamativos. É ali na esquina da Getúlio Vargas com a Barão de Cotegipe. Cobradores e motoristas resenham, os passageiros aguardam, dóceis, manuseando celulares. A partir dali já se prenuncia a solidão próxima, das ruas da Kalilândia.

Ruas longas e planas que a pasmaceira prolonga, espicha interminavelmente. Ali o comércio hiberna sob o sol da tarde de sábado e os antigos casarões – restam cada vez menos – definham. Quando o sol festivo definhar também e as sombras foram se alongando com o crepúsculo pardacento, eles vão ficar mais circunspectos, mais melancólicos, mais extemporâneos. Vão se assemelhar ainda mais com relíquias de um tempo que já não existe mais.

Por fim, a prosa, que brotou abrupta, jorra aos borbotões no começo da noite de sábado. No rádio sintonizado na Subaé AM, Roberto Carlos canta. Vejo pela janela que, sobre as taboas da lagoa do Prato Raso, um helicóptero da polícia faz manobras, com luzes azul e vermelha piscando, muito vívidas...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada fei...

Patrimônio Cultural de Feira de Santana I

A Sede da Prefeitura Municipal A história do prédio da Prefeitura Municipal de Feira de Santana começou há 129 anos, em 1880. Naquela oportunidade, a Câmara Municipal adquiriu o imóvel para sediar o Executivo, que não dispunha de instalações adequadas. Hoje talvez cause estranheza a iniciativa partir do Legislativo, mas é que naqueles anos os vereadores acumulavam o papel reservado aos atuais prefeitos. Em 1906 o município crescia e o prédio de então já não atendia às necessidades do Executivo. Foi, então, adquirido um outro imóvel utilizado como anexo da prefeitura. Passaram-se 14 anos e veio a iniciativa de se construir um prédio único e que abrigasse com comodidade a administração municipal. Após a autorização da construção da nova sede em 1920, o intendente Bernardino Bahia lançou a pedra fundamental em 1921. O engenheiro Acciolly Ferreira da Silva assumiu a responsabilidade técnica. No início do século XX Feira de Santana experimentou uma robusta expansão urbana. Além do prédio da...

O futuro das feiras-livres

Os rumos das atividades comerciais são ditados pelos hábitos dos consumidores. A constatação, que é óbvia, se aplica até mesmo aos gêneros de primeira necessidade, como os alimentos. As mudanças no comportamento dos indivíduos favorecem o surgimento de novas atividades comerciais, assim como põem em xeque antigas estratégias de comercialização. A maioria dessas mudanças, porém, ocorre de forma lenta, diluindo a percepção sobre a profundidade e a extensão. Atualmente, por exemplo, vivemos a prolongada transição que tirou as feiras-livres do centro das atividades comerciais. A origem das feiras-livres como estratégia de comercialização surgiu na Idade Média, quando as cidades começavam a florescer. Algumas das maiores cidades européias modernas são frutos das feiras que se organizavam com o propósito de permitir que produtores de distintas localidades comercializassem seus produtos. As distâncias, as dificuldades de locomoção e a intermitência das safras exigiam uma solução que as feiras...