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O medonho ofício de escrever

 Há um quarto de século mergulhado no ofício da escrita, pouco me aventurei a conjecturar sobre o que é essa labuta, o que é o escrever. A longa pandemia, porém, despertou alguns impulsos que, depois, foram se convertendo em ideias vagas; adiante, transfiguraram-se numas frases soltas, que não se conectavam; por fim, surgiu um plano, um fio condutor, que foi amadurecendo.

Agora, neste sufocante e ensolarado dezembro, venço uns resquícios de insegurança e preciosismo e me arrojo neste exercício breve, mas inóspito. E delicado, porque escrever vai além de um ofício, de uma ocupação. Diria que se mistura à própria essência do indivíduo. E é difícil lidar com si mesmo.

Escrever é, sobretudo, um exercício solitário. Mesmo que se esteja numa redação, numa repartição, num escritório, até num local público, com gente em volta. Com a experiência, aprendi que, às vezes, os textos fluem, prazerosos. Outros empacam, supliciam, castigam, flagelam. É quando as ideias se embaralham, confusas, ou quanto uma palavra desejada foge e insiste em não voltar.

É mais comum o texto empacar. Naquela fase prévia, meramente mental, tudo se encaixa que é uma beleza. As frases refulgem, claras, exatas, elegantes. Defronte ao teclado e à tela luminosa, porém, se diluem, se misturam. O que vai à tela do computador costuma ser, muitas vezes, um arremedo pálido daquilo que se pretendia comunicar, daquilo que bailou no cérebro.

Como é que se atenua isso? Os passeios curtos pela sala, as espiadelas pela janela ensolarada, os suspiros, os cafés – vício abominável – são uma trégua, um recuo estratégico que, às vezes, apazigua o espírito, areja. E aquela ideia clara, aquela frase precisa, aquela palavra lapidar, retorna, submissa e mansa, com a mente relaxada.

Mas nem sempre é assim: a lufa-lufa de escrever não é precisa, cartesiana. Só que exige aprimoramento contínuo. Com ele é que vem a maturidade, a lida calejada com as ideias e as palavras recalcitrantes. Sofre-se menos a partir daí.

Na composição do texto, quando tudo falha, resta o esforço de abstração. Lá fora, prevalecem os ruídos citadinos – motores, buzinas, vozes, gritos – mas é sempre possível filtrar os sons da natureza. No verão, prevalecem os sabiás canoros; as casacas-de-couro, com seu canto estridente, aflito; os despretensiosos bem-te-vis; e até os pardais familiares, com seus pios monótonos. Reconforta: é o que aproxima o sujeito – esmagado por suas limitações humanas – do que é transcendente, divino, no momento do esforço sobre-humano da escrita.

Caso o impasse persista, renitente, o recurso extremo é recorrer à paisagem, lavar os olhos com a rotina miúda das cercanias. A casaca-de-couro que pousa, elegante, na catingueira; o carcará imponente que persegue um pombo desajeitado, bambo; o cão vadio que marcha imponente; o gato esguio, ocioso, passeando. Neste momento vem à tona, mais uma vez, a lembrança sobre a natureza solitária da escrita. Até uma fonte que a alimenta – a leitura – é também função que requer isolamento e silêncio. Tudo prazeroso, gratificante, mas solitário.

Às vezes, dói a inveja da música. Nela, a realização costuma ser coletiva, mesmo que parte do aprendizado seja solitário também. Nem precisa ambição de orquestra, até uma bandinha mequetrefe imerge o sujeito numa sensação coletiva, de realização conjunta. Diferente da escrita que não mobiliza plateia e que implica numa conexão individual e, muitas vezes, muda.

Mas a escrita reconforta também, não é só dor de parto intelectual. Sobretudo quando palavras e frases se harmonizam, expressando ideias cristalinas, límpidas. Nestes momentos o escrevinhador inflama o peito e se vê autor de coisa grandiosa. Bobagem: lá adiante, ele esbarra noutro texto, noutra peleja difícil de enfrentar. É assim mesmo. Nisto reside o fascínio da escrita: aquilo que os dedos acabaram de parir, morre; é trabalho morto; e se impõe, já no momento seguinte, a hercúlea tarefa de recomeçar...

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