Pular para o conteúdo principal

O enigma no trem em Porto Alegre

O rapaz de cabelos e olhos claros entrou e sentou bem defronte a mim.  O trem estava vazio – era metade de uma manhã cinzenta de fim de inverno e o sol e as nuvens alternavam-se no céu – e, ali na Estação do Mercado, havia uma quietude profanada por poucos passageiros apressados. Lá de fora – distantes – chegavam sons distorcidos, indefiníveis. Mas no vagão prevalecia um silêncio tênue, que uma tosse persistente, passos abafados ou o incessante vasculhar de sacolas fragmentavam. Então, depois do aviso sonoro, as portas se fecharam e o trem avançou em direção a Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre.

Entretive-me tentando enxergar o Guaíba – eriçado com o vento daquele fim de inverno e seus múltiplos tons, ora cor de aço, ora acobreados –meio encoberto pela vegetação e pelas construções cinzentas. À medida que as estações foram se sucedendo – Rodoviária, São Pedro, Farrapos – começou a subir mais gente. Subiam também os ambulantes que ofereciam suas bugigangas.

Do lado oposto ao Guaíba vê-se o centro de Porto Alegre num extenso, mas suave aclive, com suas construções solenes, sisudas, de cores neutras. Depois da Estação Aeroporto a paisagem vai assumindo uma feição desinteressante, típica das grandes metrópoles. Viadutos, vias expressas, fábricas, galpões comerciais ociosos – malconservados – vão se sucedendo, encardidos pela fumaça que o vento nem sempre dispersa.

Há também muita pobreza, ostensiva, a alguns metros das linhas férreas. Crianças esfarrapadas brincando no chão úmido, sujeitos ociosos com agasalhos surrados, mulheres lavando roupa, imersas nas tarefas domésticas. Com músculos retesados, alguns desgraçados conduziam monumentais volumes de material reciclável – papelão, latas, hastes metálicas – para defender alguns trocados.

A paisagem repetitiva, monótona, cinzenta, desatava a atenção. Então entretive-me examinando os passageiros. Gente modesta, que se dedicava às suas tarefas corriqueiras. Só então notei que o rapaz mencionado no começo do texto tentava concentrar-se na leitura de um livro. Não foi difícil ler o título: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. O autor é o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, guru da trupe que ocupa Brasília.

Bem vestido, tinha jeito de estudante. Conduzia uma mochila de grife, que acomodava no colo. Interrompia a leitura com os solavancos do vagão, com o incessante sobe-e-desce de passageiros, com os pregões dos ambulantes que suplicavam a atenção dos passageiros. Ou seja: quase não lia. Mas examinava furtivamente as pessoas ao redor. Não era um olhar discreto, mas um exame amedrontado. Havia naqueles incessantes golpes de olhos um receio de ser flagrado, de ser pilhado observando.

Boa parte dos que se aventuram vendendo aquelas quinquilharias – aparelhos para descascar verdura, carregador de celular, fones de ouvido – são negros e labutam com valises que abrigam a mercadoria. Naquele horário moviam-se tranquilos, pois os passageiros eram raros. O rapaz media-os de soslaio, com um olhar esquisito. Ódio? Não se via aquela centelha característica. Temor? Não havia hesitação. O que havia – parecia – era um imenso pasmo. Como quem se depara com extraterrestres.

Não conheço – nem pretendo conhecer – o conteúdo do livro, mas enveredei por algumas especulações, enquanto não findavam os 42 quilômetros daquela viagem. Notei que o rapaz estava na metade da leitura. Será que o pasmo se devia a essa condição intermediária? Não era mais idiota, porque decifrava o livro, mas não concluíra leitura e a metamorfose e, portanto, ainda devia ser meio idiota. Será que idiotas pela metade exibem olhar aparvalhado, perdido, feições estupefatas?

Lá adiante – imagino que no município de Sapucaia do Sul, mas a memória é traiçoeira – ele desceu. Daí para a frente as estações se sucediam – São Leopoldo, Rio dos Sinos, Santo Afonso e, finalmente, Novo Hamburgo ficaram na lembrança –, com a regularidade dos trens que sacolejam, rangem, levando gente. O enigma do sujeito de olhar esquisito perseguia-me, mesmo vendo o luminoso Rio dos Sinos e a bela silhueta de São Leopoldo. Há um estado de idiotice que se desfaz com a leitura do livro, como uma revelação, um transe religioso? Não encontrei resposta.

Em Novo Hamburgo até acompanhei uma celebração católica, ao meio-dia, na bonita Catedral da cidade. Um padre avermelhado, muito branco, pregava com voz mansa. Mesmo assim, saí da igreja sob o frio suave daquele começo de tarde sem as respostas para o tormentoso enigma...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express