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Dilemas da recauchutagem do Bolsa Família

 – É por isso que o povo não quer fazer mais nada!

A indignação era tamanha que ele nem conseguia sentar, beber com calma a cerveja barata que esquentava no copo americano. Naquelas caminhadas curtas até a porta do bar, arrastava os pés e as sandálias rangiam um rangido desagradável. Lá fora, a azáfama da manhã de sábado na Feira de Santana. Ambulantes, donas-de-casa, gente pejada de sacolas, o apito persistente de quem tentava ordenar o trânsito caótico.

Naquele infindável ir-e-vir, resolveu investir novamente:

– Tô com a roça lá para limpar e ninguém quer trabalhar. Chamo um, chamo outro, ninguém topa. A culpa é desse Bolsa Família, desse negócio de ficar dando dinheiro de graça para pobre...

Que fazer? Deixar a bola passar. Ali não havia diálogo. Era um monólogo. No palco de cimento áspero, um iracundo crítico do petê. Almejava incorporar-se à elite, julgava-se mesmo pertencente a ela. Branco, cabeleira densa, grisalha, afetação ríspida de coronel do interior. Certamente votou em Jair Bolsonaro, o “mito”, nas últimas eleições e – provavelmente – encorpa o séquito de acólitos que o cultua e exibe as mandíbulas para seus críticos.

O problema é que tudo indica que a turma que cultiva essa opinião vai ter de rever seus conceitos. É que lá, no Planalto Central, o “mito” já enxergou o potencial eleitoral da iniciativa. E pretende vitaminá-la com mais recursos a partir do ano que vem. Embora ainda não tenha saído do papel, a proposta já tem até nome novo, compatível com as disposições patrióticas do novo regime: Renda Brasil.

Há poucos dias comentava-se que o valor médio do benefício poderia saltar para R$ 247 ou até mais de R$ 300. Bem acima dos R$ 189 médios pagos atualmente. O número de beneficiário também pode ser ampliado, incorporando mais seis ou oito milhões de pessoas. A inspiração veio do auxílio emergencial – a proposta despertava pouca simpatia dos novos donos do poder no começo – que reverteu parte da rejeição que o “mito” tinha entre os mais pobres, animando-o em sua precoce campanha pela reeleição.

Talvez parte dos eleitores do “mito” não goste da ideia. Exatamente aqueles que recorrem aos pobres para tarefas domésticas – jardineiros, diaristas, encanadores – que vão precisar gastar mais lá adiante. Como o indignado interlocutor daquela manhã de sábado, por exemplo. Caso consiga calcular as consequências, deve estar indignado, arrancando sua cabeleira grisalha, vociferando contra Jair Bolsonaro.

Mas isso só vai surtir efeito – ou não – mais à frente, caso o “mito” de fato tire a ideia do papel. O problema, obviamente, é orçamentário: de onde vão tirar o dinheiro para bancar benefícios tão “generosos”? Não vai ser fácil. Sobretudo porque foi o discurso da austeridade – evidente enganação – que encantou a turma do “deus mercado”, cooptando-a para a órbita dos acólitos do “mito”.

Por enquanto, restam as parcelas remanescentes do auxílio emergencial, que vão empurrar o imbróglio para 2021. No habitualmente escaldante janeiro, o brasileiro pobre, coitado, volta a esquentar a cabeça com a questão da subsistência...

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