Originalmente publicado em Nov/2020
Amanhã, 2 de novembro, é dia de
Finados. Imagino que a pandemia e o feriado prolongado vão reduzir a frequência
aos cemitérios feirenses. Quem for, porém, poderá observar algo que notei há
tempos nas necrópoles da cidade. Trata-se da mudança no perfil de quem é
sepultado. No passado – décadas atrás – os mortos quase sempre se limitavam aos
mais velhos, vitimados por causas naturais. Hoje, quem examina nomes, datas e
rostos nos retratos opacos das molduras, percebe como a morte alveja bastante os
mais jovens.
Deduzo que, em grande medida, o
fenômeno se deve à violência urbana. O medo da criminalidade mudou os costumes
da população pelas ruas das cidades. Afetou até mesmo os hábitos domésticos. E
os incessantes assassinatos – uma guerra a conta-gotas – mudaram, também, o
perfil de quem é sepultado. Rostos juvenis em molduras chamativas e a baixíssima
faixa etária – muitos, sequer, completaram 18 anos – tornaram-se corriqueiros.
Por razões familiares, desde os
anos 1980 visito o Cemitério São Jorge. Acompanhei, como observador, essas
mudanças. Mas, quem quiser, pode reconstituir parte do drama nos dias atuais.
Basta examinar os túmulos antigos, compará-los com as sepulturas mais recentes,
atentar para a faixa etária de quem morria antigamente e de quem morre hoje. É
um método impreciso, mas ajuda a perceber com clareza a matança, epidêmica há
muito tempo.
Naquela necrópole, foram sendo
construídos gaveteiros na área dos fundos, que abrigam muitos jovens que vão
tombando todos os anos. No escaldante 2 de novembro do ano passado vi, lá, muita
gente visitando jovens vítimas da violência. Pais, amigos, irmãos, namoradas,
até filhos bem pequenos dos falecidos. Nas sepulturas, às vezes, a referência a
um apelido, à saudade dos amigos.
Tempos atrás testemunhei um
sepultamento do gênero. Gente jovem, preta e parda, sofria numa desesperada
despedida. Uma jovem, em prantos, recusava-se a aceitar aquele fim violento, a
separação definitiva. Por fim, sob um sol intenso, um grupo com bonés segurou as
alças do caixão e conduziu, em silêncio, o rapaz para a sepultura.
O morticínio juvenil no Brasil é
uma catástrofe que se arrasta há décadas. E os cemitérios tornaram-se palco
privilegiado para a observação da tragédia. Aqui na Feira de Santana – são mais
de 300 assassinatos em 2020 – esse horror é quase diário.
O pior é que há poucas
expectativas de reversão no médio prazo. Afinal, a morte, mais que uma política
deliberada contra a juventude negra, se tornou uma obsessão dos atuais
governantes. O envolvimento das vítimas com a criminalidade – nem sempre
comprovado – é só um pretexto para o extermínio.
Poucas vezes, no Brasil, o Dia de
Finados ocorreu sob a tão intensa sombra da morte. A pulsão do Tanatos é o que move o Planalto Central.
O descaso com a pandemia, as queimadas criminosas no Pantanal e na Amazônia, o
“excludente de ilicitude”, o lobby da indústria bélica, a desenvoltura das
milícias, a privatização da saúde pública, tudo isso recende a morte.
Mas que, amanhã, a vida pulse nas
homenagens que os brasileiros prestarão aos seus entes queridos...
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