Nas sempre
ensolaradas manhãs de domingo às vezes passo defronte à Biblioteca Municipal,
ali na Rua Geminiano Costa. Ouvindo os pios álacres dos pardais, percebo que o
espaço está sempre fechado: veem-se os portões cerrados e, lá dentro, pelos
vidros transparentes, nota-se uma macambúzia meia-penumbra. De imediato, o
silêncio e a quietude ao redor abrem as portas da memória, que me transporta
para décadas atrás, na primeira metade dos anos 1990.
Ali, aos
domingos, as mesas eram ocupadas por trabalhadores – principalmente
comerciários – que estudavam à noite, na rede pública. Com tempo escasso,
sacrificavam o lazer e o descanso do domingo para concluir suas tarefas
escolares. Muitos bordejavam os trinta anos, mas persistiam debruçados sobre os
livros, garimpando um futuro melhor.
Gente mais
calejada frequentava o espaço para ler os jornais, entabular conversa com conhecidos,
mostrar-se ilustrados. Era quando o A Tarde, a Folha do Norte e, sobretudo, o
extinto Feira Hoje eram disputados por leitores ávidos. Assíduo, um deles certa
vez deixou escapar um comentário que nunca esqueci:
- É a
Biblioteca que nós temos. Não é a de Londres, mas é a que nós temos.
E é, até
hoje. Lá fui apresentado a muito do que a literatura brasileira produziu de
melhor: Jorge Amado – li quase todos os livros do autor disponíveis naquelas
estantes – Graciliano Ramos e a inesquecível leitura de “Memórias do Cárcere”, Machado
de Assis, Raquel de Queiroz, Lígia Fagundes Teles, Mário de Andrade, até Eça de
Queiroz. E havia mais clássicos, que percorri com êxtase febril.
Todos os
livros estavam disponíveis para empréstimo: bastava um cadastro e acessava-se
um cartão que foi preenchido com espantosa regularidade ao longo de um ano.
Devorei alguns exemplares em apenas dois dias, para espanto das atendentes
daquele tempo. A partir daquele estágio involuntário no que a língua portuguesa
produziu de melhor migrei, pouco depois, para a redação do extinto jornal Feira
Hoje.
Tempos
depois, militando no movimento estudantil, restabeleci relações com a
Biblioteca Municipal: ali realizávamos, nos sábados à tarde, reuniões para
discutir conjuntura, planejar ações do diretório acadêmico, repisar sonhos, acalentar
expectativas em relação ao futuro. Dialogava-se: as mídias sociais e as novas
formas de interação ainda eram inimagináveis naqueles tempos.
Depois o tempo passou e essa relação mais direta
foi se desfazendo. Mas nem tanto: a memória afetiva lateja e, às vezes, impõe
lembranças como as que foram desfiadas acima. Sobretudo na quietude das manhãs
de domingo, quando essas recordações se impõem com um doloroso gume de saudade
naquela calçada larga e vazia de passantes.
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