O rapaz
atravessou a Rua Andaraí, lá no Jardim Cruzeiro, e estacionou defronte ao
açougue, na calçada. Pilotava uma daquelas bicicletas adaptadas para
transportar mercadoria. Examinou por alguns instantes os mostruários que
exibiam postas bojudas de carne bovina, suína e caprina; frangos graúdos de tez
amarelada; e a variedade de miúdos e vísceras que ficavam num canto do
mostruário. Por fim, espichou o olhar para refrigeradores vazios num canto.
Então indagou, sem descer da bicicleta:
- Quanto é
que está o quilo do fígado?
Veio uma
resposta qualquer lá de dentro, da moça no caixa que se enfastiava à espera de
fregueses. Ele hesitou por um segundo e voltou à carga:
- E a carne
de sol?
Colheu a
resposta e foi fazendo uma curva larga, sobre a calçada de pedras portuguesas,
para tomar a direção oposta. Na bicicleta, equilibrava uma caixa grande e outra
média de isopor. Em ambas, pregado em papel ofício, o anúncio: “Quentinha R$
5,00”. Depois da manobra, seguiu em direção à Avenida Contorno, com o vento do
início de junho sacudindo o guarda-pó branco, pois ele envergava um guarda-pó.
É jovem, pardo,
um pouco gordo. Talvez tenha uns trinta anos. À medida que se afastava,
examinava os arredores, esperançoso de encontrar um cliente eventual. Depois sumiu
na confusão de carros, motos, bicicletas e caminhões que transitavam pela via congestionada.
O guarda-pó era o único detalhe que o distinguia: trajava camiseta, bermuda e
sandálias de dedo ordinárias.
Pobre
coadjuvante na indústria de alimentos, aquele rapaz não é o único: sem opções –
sobretudo nos últimos anos – muitos feirenses enveredaram pelo comércio de
refeições prontas. Obviamente, não só feirenses: a necessidade se impõe a muitos
brasileiros de milhares de municípios.
Trafegam num
circuito precário: dedicam-se, na informalidade, a essa faina e costumam contar,
na sua cartela de clientes, com gente que também opera fora da economia formal.
Os preços baixíssimos dessas refeições embutem uma realidade cruel: não há
nenhuma prestidigitação nos custos, mas redução na quantidade de alimento
ofertada. Noutras palavras, o brasileiro com dinheiro curto que precisa comer na
rua está ingerindo porções menores.
- Tapeando a
fome – como muitos dizem.
Em São
Paulo, restaurantes e lanchonetes no centro antigo e em regiões de grande
aglomeração de trabalhadores oferecem refeições similares por R$ 10: metade de
um prato-feito, para recorrer à métrica consagrada nesses circuitos. Camufla-se
o desconchavo: quem vende e quem compra finge que segue tudo normal.
Lentamente, essa anormalidade – sinônimo de
precariedade – se impõe nesses tempos de intermináveis agruras econômicas. Quase
trinta anos depois, aquela música da Legião Urbana, “O Teatro dos Vampiros” – a
letra magistral é de Renato Russo – parece cada vez mais atual e define, com
rara precisão, os tormentosos tempos que vamos atravessando.
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