- Olha a água, olha a água, olha
a água...
O pregão se tornou corriqueiro no
verão escaldante de 2019. Não apenas aqui, na Feira de Santana, aonde um enxame
de ambulantes se movimenta pelo tumultuado centro da cidade ou em qualquer
avenida que disponha de um semáforo para reter motoristas por alguns instantes.
Eles estão em incontáveis cidades brasileiras – sobretudo nos grandes centros
urbanos – e constituem um exército de dezenas de milhares que tenta garantir o
pão em condições absolutamente desfavoráveis.
Essa gente tem cor e classe
social: costumam ser negros ou pardos, pobres, pouco instruídos, residentes nas
favelas ou nas periferias. São sempre homens, mas não é incomum se ver também
mulheres que se mexem com insuspeita agilidade entre os automóveis que reluzem
sob o sol do verão. Todos, invariavelmente, exibem aquelas garrafas azuladas
tentando despertar o desejo de motoristas e transeuntes.
Não são apenas os vendedores de
água que tomaram ruas, praças e avenidas das cidades brasileiras. Há vendedores
de praticamente tudo – é comum se ajustar o produto à estação do ano e ao clima
– e, em alguns lugares, é difícil avançar em função do assédio e, também, da
falta de espaço nas calçadas.
País desigual e de poucas
oportunidades, o Brasil sempre teve muita gente se virando, bancando
empreendedor, vendendo mercadorias pelas ruas, na tentativa de garantir o
sustento da família. Mas, nos últimos anos, esse número cresceu
expressivamente, conforme atestam as estatísticas e o olhar atento de quem se
interessa pelo comércio de rua e pela economia informal.
Razões
Em linhas gerais, percebem-se
três movimentos distintos no fenômeno. O primeiro – mais antigo e mais
estrutural – é a redução da demanda por trabalhadores, por razões tecnológicas,
mas também pelas próprias metamorfoses do sistema capitalista. Global, esse
movimento se arrasta há décadas e impacta o conjunto do mercado de trabalho,
mas é bem mais perverso com os mais pobres.
Domesticamente, temos um segundo
movimento, que foi a crise econômica iniciada em meados de 2014 e que se
estende até os dias atuais. Ela afetou o conjunto dos trabalhadores, mas mais
fortemente aqueles profissionais menos qualificados que transitam com muita
frequência entre o formal e o informal. Aboletados em empregos instáveis e modestamente
remunerados até o início da crise, foram expurgados para a informalidade nos
últimos anos.
Muita gente permanece na
informalidade porque o mercado de trabalho piorou a partir da famigerada
reforma trabalhista promovida por Michel Temer, cujo triste mandato expirou em
dezembro. É que foram criados tantos mecanismos de precarização que retornar à
formalidade não necessariamente é um bom negócio. Esse é o terceiro movimento,
o mais sutil e o de análise mais controversa, por enquanto.
A reforma trabalhista do emedebismo
– que na prática revogou a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT – trouxe
como novidade mais cruel a “jornada intermitente”. Ela nada mais é que um
biscate formalizado, remunerando o trabalhador a cerca de R$ 5 a hora. Não há,
sequer, garantia de que haverá demanda frequente. Na prática, muita gente
recrutada pode acabar “pagando para trabalhar”, conforme se diz no popular.
Sem férias, sem décimo terceiro
salário, sem recolhimento previdenciário – é necessário ressaltar que esses
valores, no regime intermitente, são ínfimos –, muita gente prefere permanecer
na informalidade, sendo o próprio patrão, fazendo a própria jornada de
trabalho. Mesmo que seja – conforme se vê – vendendo água nas calçadas e nos
semáforos e, lá no futuro, dependendo de um irrisório benefício social quando a
velhice chegar.
Ano passado, a expansão no número
de postos de trabalho foi impulsionada pelo setor informal. Talvez, em parte, o
fenômeno seja explicado por raciocínios do gênero...
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