O leitor vai perdoar certa confusão na organização das
ideias: é que, nos últimos dias, o País mergulhou em um turbilhão de
acontecimentos com a greve dos caminhoneiros e, nesse momento, está difícil organizar
as informações, hierarquizá-las, atribuir-lhes um sentido mais geral. Sendo
assim – e, de antemão, contando com a gentil compreensão – vai se instituindo
aqui uma prosa errática, repleta de lacunas e que vai oscilar de direção, sem
rumo preciso nesse primeiro momento.
Lá adiante, quando o turbilhão serenar – isso quando o fizer
– será possível pesar e medir cada acontecimento, atribuir valor e, a depender
dos desdobramentos, aprofundar aquelas análises mais necessárias. Há muita
confusão no ar, muito burburinho e especulação e, no momento, investir em determinadas
vertentes pode se traduzir em resultados estéreis.
Desde já, é bom mencionar uma lembrança antiga. Tem sido
comum ver, nos postos de combustíveis, filas de consumidores esperando o
momento de abastecer e não falta quem circule portando galões abastecidos ou
não. O comentário recorrente em cada esquina é sobre a disponibilidade de
combustível, sobre preço, sobre barreira em estrada.
Cenário do gênero – de racionamento e incerteza – só recordo
de ter visto em 1986, quando foi lançado o Plano Cruzado, no governo José
Sarney. À época, com tabelamento, era comum os produtos sumirem das prateleiras
à espera de preços mais elevados. Isso condenou milhões de brasileiros a amargar
filas para comprar, entre outros itens essenciais, carne. Pensava que não
voltaria a ver situações do gênero.
Mas vamos análise dos dias que correm. Subdividi em itens até
para facilitar a organização das ideias.
Governo de Joelhos
Desde quinta-feira (24) o governo de Michel Temer (MDB-SP)
anunciou, três vezes, o fim da paralisação dos caminhoneiros. E, num desrespeito
impressionante, três vezes a categoria desfez o acordo e manteve a greve. A
cada anúncio, cai ainda mais a credibilidade de um governo que já dispunha de
pouca legitimidade junto à população. No domingo (27) veio o terceiro anúncio,
desmentido pelas imagens de tevê poucas horas depois.
O pior nem é isso: é a postura do governo nas negociações. O
emedebismo, inicialmente, tentou endurecer, mas cedeu em tudo logo depois. E o
que fizeram os caminhoneiros? Desdisseram o que disseram antes, mantendo os veículos
estacionados Brasil afora. Trata-se de uma afronta à autoridade presidencial –
pense-se, aqui, em terceira pessoa – e um gesto de deboche, refugar o que foi
acordado pouco antes.
A sisuda postura liberal ruiu em pouco tempo: de austero
defensor da responsabilidade fiscal e do equilíbrio das contas públicas, o
governo enveredou por uma liberalidade orçamentária movida pelo desespero, para
se desembaraçar do enrosco. Não conseguiu, mas ficou ainda mais evidente que o
mercadejar, o acerto de balcão é o modus
operandi essencial do emedebismo.
Liberal, pero no mucho
Nas ensandecidas jornadas pela deposição de Dilma Rousseff
(PT) teve muito brasileiro afirmando-se de direita, liberal, defensor do
livre-mercado. Aquele discurso arrancava entusiásticos elogios da turma do
mercado, que enxergava um futuro radioso para o Brasil, caso o País se
desvencilhasse do estatismo e do “desenvolvimentismo”, pragas responsáveis pelo
nosso atraso secular.
Pois bem. Nada é mais liberal que a política de preços da
Petrobrás: a empresa corrige suas tarifas considerando os preços do mercado
internacional do petróleo, incorporando o câmbio como variável adicional. Nada
mais liberal, nem mais globalizada, que a metodologia cunhada por Pedro
Parente, o presidente da empresa. Talvez tenha havido exagero apenas no
intervalo dos reajustes – diários –, o que elevou muito a incerteza.
Recém convertido ao liberalismo, o brasileiro médio ficou
magoado: aferra-se à defesa de uma política de preços que não apenas expanda o
intervalo entre os reajustes, mas que resgate o subsídio, o que ainda ontem era
anátema para nossos desavisados liberais. Noutras palavras, nada de economia
aberta: deseja-se a ação protetora do Estado, intervindo contra as oscilações
de preço.
Mais cômico é ver gente na televisão defendendo “imposto
zero”. Lá adiante, vai reclamar da situação das estradas, do atendimento na
saúde, da educação precária, da insegurança. No mundo de faz-de-conta em que
muita gente vive, desejam-se serviços públicos com padrão nórdico e carga
tributária de paraíso fiscal.
Esquerda, volver?
Em 1964 a esquerda – representada, sobretudo, pelo Partido
Comunista Brasileiro, o PCB – desembestou num radicalismo inócuo e nocivo,
alinhando-se, involuntariamente, àquilo que a extrema-direita ansiava: a deposição
de João Goulart, presidente da República. Veio o golpe, não houve resistência e
a ditadura militar se estendeu por tenebrosos 21 anos.
A greve dos caminhoneiros mostra que é sempre possível
insistir na mesma tecla – errada –, escudando-se em teses absorvidas
mecanicamente da realidade russa de um século atrás. Há quem, militando à
esquerda, defenda o apoio à greve e que se resgate o “Fora Temer” mais uma vez.
Certamente essa gente vai encontrar calorosa recepção entre os que, à margem
das rodovias, ostentam, orgulhosamente, faixa exigindo “Intervenção militar
já”.
Caso prospere, o “Fora Temer” pavimentará o caminho para a
ascensão de uma extrema-direita iracunda que, no poder, teria exatamente o que
resta da esquerda como alvo preferencial. Ou temos aí um Lênin tropical capaz
de, subitamente, arrebatar as massas? Caso exista, permanece escondido, sob a
mais absoluta discrição.
Delírios do gênero vem se disseminando em notas formais e em
análises abalizadas de doutos teóricos da esquerda. Como se vê, um desastre,
como se o que aconteceu em 1964 fosse pouco.
E agora?
Ontem (28) foi divulgada a inquietante informação que grupos
de extrema-direita tentam se apropriar do movimento dos caminhoneiros para, sob
o caos da paralisação, facilitar a deposição de Michel Temer e viabilizar o
assalto ao poder classificado como “Intervenção militar”. Qualquer observador
atento, desde o início, ficou desconfiado que essa era a intenção de certas
figuras.
Faltando cinco meses para as eleições – que podem sinalizar
para algum rumo – a deposição do mandatário de Tietê, agora, seria uma
catástrofe para a claudicante democracia brasileira. Não por ele, claro. Mas é
que isso nos colocaria na antessala de uma ditadura sem subterfúgios, com
desdobramentos imprevisíveis para o País. Afinal, quem assumiria o poder?
Adepto das soluções mágicas, dos encantamentos, dos
“milagres”, o brasileiro médio, hoje, supõe que é possível trocar presidente da
República como se troca de camisa. Basta um celular com aplicativo de rede
social, alguns clichês, a invocação das bênçãos do Altíssimo e a sede de
compartilhamento, para mudar o País.
Na prática, a vida real é bem mais complicada
que essa pajelança digital...
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