Pular para o conteúdo principal

Ascensão da extrema-direita é o legado da greve dos caminhoneiros

Depois de encerrada a greve dos caminhoneiros, que paralisou o País durante dez dias, é chegado o momento de contabilizar os prejuízos. Os danos econômicos – produtos deteriorados, animais sacrificados, desabastecimento, suspensão na prestação de serviços – tudo isso é, de certa forma, facilmente mensurável. Especialistas indicam que os valores bordejam os R$ 75 bilhões e o movimento vai impactar sobre a claudicante recuperação do Produto Interno Bruto, o PIB. Esse, pelo que se estima, não deve crescer mais do que 2% em 2018. Péssimo para quem precisa, com urgência, deixar a terrível recessão para trás.
Mas há coisa pior de dimensionar por aí. É a anarquia que se espalhou pelo Brasil e que qualquer cidadão – com acesso a um aparelho celular e a esses aplicativos de rede social – pôde constatar, bestificado. Impressionante foi o volume de mensagens mentirosas – as “fake news”, conforme a expressão importada, já consagrada – que circularam desde o primeiro momento em formato de vídeos, áudios, textos, animações, banners.
Da ameaça de bloquear um aplicativo aos rumores de que o governo pretendia desligar a energia elétrica do País, à noite, para forçar o fim da paralisação, valeu tudo. E, claro, como a essência da notícia hoje é a fé e não sua conexão com a realidade, muita gente seguiu repassando essas mentiras adiante, seja pela crença, para alarmar, provocar pânico ou, deploravelmente, se divertir.
As mentiras tinham o óbvio propósito de reforçar o apoio à mobilização dos caminhoneiros. Mas não se prendiam à pauta econômica: esta serviu de pretexto para que objetivos obscuros aflorassem mais adiante, defendendo uma “intervenção militar” – eufemismo para um clássico golpe de estado – para “consertar” o país, redimindo-o da corrupção endêmica. É o roteiro da fantasia.

Democracia cambaleante

O movimento emparedou Michel Temer (MDB-SP), o mandatário de Tietê, que cedeu a todas as exigências dos grevistas. Mas que, mesmo assim, permaneceu pressionado: no início da semana, já se discutia abertamente no Congresso a possibilidade de sua destituição. Nos bastidores, os rumores cresciam, apesar das reiteradas negativas dos militares e do suposto desinteresse de políticos da extrema-direita pelo golpe.
Naquele momento – para profundo desconforto dos sensatos – pareceu que, caso a pressão continuasse, o mandatário de Tietê poderia cair. Com ele, ruiria o que restam de aparências democráticas no Brasil. Mas quem ascenderia? Falava-se no presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) ou em Carmen Lúcia, que está à frente do Supremo Tribunal Federal.
Mas quem é que ia conter a pressão arrebatadora da extrema-direita, que vinha embalada pela rejeição da população aos políticos e à carga tributária brasileira? Quem garante que uma nova – e intensa – crise política não descambaria em uma ditadura sem nenhum freio? A cuidadosa cobertura da grande imprensa, a cautela nas manifestações dos políticos governistas, o caos decorrente do desabastecimento e a aceitação do discurso salvacionista demonstraram que o risco era real.
Na quarta-feira (29) o movimento começou a arrefecer e as concentrações de caminhões e carretas às margens das rodovias se desfez. Mas ficou a sensação de que a extrema-direita se firmou no cenário político e nada impede que – lá adiante – ressurja nova mobilização com a mesma pauta. Ou que eles aproveitem uma circunstância qualquer para tentar chegar ao poder à força.

Eleições?

Hoje, é necessário defender a realização das eleições gerais em outubro. Anos atrás, frase do gênero soaria absurda, porque acreditava-se que a democracia, no Brasil, era algo em sólida consolidação. Não é mais: as intensas turbulências – desde 2014 – mostram que o País está cada vez mais dividido, fracionado; e é em momentos assim que as soluções autoritárias amealham simpatias, conquistam adeptos. É a ameaça que se vê no momento, pairando no ar.
A campanha eleitoral vai ser ainda mais cindida que em 2014. Desde então, houve a deposição de Dilma Rousseff (PT), a revelação de impressionantes esquemas de corrupção que tornaram o País refém das empreiteiras e, ao largo de tudo isso, a ascensão da extrema-direita, com seu discurso linha-dura, amparado por um teor salvacionista de inspiração religiosa.
Tudo indica que as “fake news” vão se avolumar; o obscurantismo religioso, como plataforma política, e as disposições autoritárias vão angariar simpatias crescentes; a classe política insistirá nos acordos inconfessáveis, nas barganhas vergonhosas como método político; e a população seguirá refém da intolerância e da profunda ignorância que veio à tona nesse episódio recente.
Mas é necessário que haja eleições. Sem elas, com ruptura na ordem democrática, vai ser muito pior.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada fei...

Patrimônio Cultural de Feira de Santana I

A Sede da Prefeitura Municipal A história do prédio da Prefeitura Municipal de Feira de Santana começou há 129 anos, em 1880. Naquela oportunidade, a Câmara Municipal adquiriu o imóvel para sediar o Executivo, que não dispunha de instalações adequadas. Hoje talvez cause estranheza a iniciativa partir do Legislativo, mas é que naqueles anos os vereadores acumulavam o papel reservado aos atuais prefeitos. Em 1906 o município crescia e o prédio de então já não atendia às necessidades do Executivo. Foi, então, adquirido um outro imóvel utilizado como anexo da prefeitura. Passaram-se 14 anos e veio a iniciativa de se construir um prédio único e que abrigasse com comodidade a administração municipal. Após a autorização da construção da nova sede em 1920, o intendente Bernardino Bahia lançou a pedra fundamental em 1921. O engenheiro Acciolly Ferreira da Silva assumiu a responsabilidade técnica. No início do século XX Feira de Santana experimentou uma robusta expansão urbana. Além do prédio da...

O futuro das feiras-livres

Os rumos das atividades comerciais são ditados pelos hábitos dos consumidores. A constatação, que é óbvia, se aplica até mesmo aos gêneros de primeira necessidade, como os alimentos. As mudanças no comportamento dos indivíduos favorecem o surgimento de novas atividades comerciais, assim como põem em xeque antigas estratégias de comercialização. A maioria dessas mudanças, porém, ocorre de forma lenta, diluindo a percepção sobre a profundidade e a extensão. Atualmente, por exemplo, vivemos a prolongada transição que tirou as feiras-livres do centro das atividades comerciais. A origem das feiras-livres como estratégia de comercialização surgiu na Idade Média, quando as cidades começavam a florescer. Algumas das maiores cidades européias modernas são frutos das feiras que se organizavam com o propósito de permitir que produtores de distintas localidades comercializassem seus produtos. As distâncias, as dificuldades de locomoção e a intermitência das safras exigiam uma solução que as feiras...