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O encanto indescritível do Vale do Capão

O Vale do Capão começa a embriagar os olhos de quem se aventura pelo coração geográfico da Bahia ainda na BR 242, a que atravessa todo o estado no sentido Leste-Oeste, em direção ao Planalto Central do País. Pela rodovia sinuosa e íngreme vão se revelando os morros sucessivos com sua inconfundível coloração rochosa, recobertos pela espinhosa vegetação típica do semiárido. Mais além os chapadões se estendem, azuis em dias de sol radioso, misturando-se ao horizonte, confundindo-se também com o céu que assume uma coloração mais clara.
A essas alturas o viajante já está imerso no espírito da Chapada Diamantina. Há, aí, o respeitoso espanto com o grandioso espetáculo da natureza, misturado a uma sensação de eternidade que a paisagem inspira. O sentimento se avoluma à medida que os olhos se embebedam com aquela beleza que revela uma nova perspectiva a cada curva, a cada ângulo, a cada efeito que o vento e a luz, combinados, produzem.
Quando envereda pela BA 849 que dá acesso a Palmeiras – o badalado Vale do Capão abriga a vila de Caeté-Açu, pertencente ao município – já, previamente, se inebriou com o descortinar de belezas e, em alguma medida, imergiu no místico clima local. Mas, seguramente, não vai se decepcionar com a pequena e graciosa cidade de Palmeiras.
Nela, há relíquias arquitetônicas que remontam à primeira metade do século passado. Na praça que abriga a igreja o visitante pode se extasiar com algumas dessas preciosidades, antes de seguir viagem. No domingo, a rotina lembra aquelas descrições do interior bucólico: ruas desertas, portas fechadas e, aqui ou ali, uma anciã debruçada numa janela, entretida com os passantes, testemunhando o manso escorrer da vida no interior.
Vale do Capão
A distância entre Palmeiras e Caeté-Açu – e do místico Vale do Capão – é de 21 quilômetros, percorridos em estrada de terra.  Quem se aventura enfrenta curtos trechos arenosos, constantes costelas-de-vaca – que produzem uma trepidação desconfortável – e uma infinidade de curvas, além das constantes subidas e descidas que caracterizam a acidentada região.
O desconforto, porém, é plenamente recompensado pela indescritível paisagem. Primeiro, num trecho longo, a estrada é margeada pelo Rio Preto, cujas águas intensamente ferruginosas escorrem mansas nos períodos de inverno. Nalguns pontos as pedras tentam se insinuar à flor da água, expondo a rocha clara que assume pitoresco tom avermelhado.
Mais adiante, começam a se tornar frequentes morros e vales, imersos num silêncio profundo e acolhedor, desafiando a vista e a imaginação do visitante. Nos paredões a vegetação brota, teimosa, contrastando com o tom esbranquiçado das formações rochosas. Aves de rapina lançam-se em voos arrojados e, muito distantes, destacam-se as fachadas das moradias dos descendentes da gente negra e parda que reside no Capão desde os primórdios da ocupação.
Caeté-Açu
A imersão nos deslumbrantes cenários naturais contrasta com o aspecto citadino que a vila de Caeté-Açu vem assumindo nos últimos anos. Nos sopés dos morros, residências elegantes vão se multiplicando, com telhados de telhas claras, fachadas envidraças, suítes, piscinas, churrasqueiras e o conforto acessível apenas aos abastados.
Mais adiante, sucedem-se pousadas e hotéis elegantes que oferecem serviços de bar, restaurante e guia para os visitantes endinheirados. Caminhonetes luxuosas e utilitários possantes ocupam garagens ou desfilam nas ruas estreitas da vila, ostentando placas de destinos distantes. Cafés requintados, restaurantes refinados e até adegas estão disponíveis àqueles mais abastados.
Gente que é parte desse público fixa residência também: os loteamentos se disseminam a partir do quadrilátero que abriga a igreja de São Sebastião e sobe ou desce morros, conforme os caprichos da geografia. Os novatos que vão conviver com os nativos são facilmente identificáveis: exibem pele e olhos claros, desfrutam de conforto praticamente inacessível à população nativa e demonstram pouca intimidade com a vida no campo.
Nacionalidades
Os alternativos residentes no Vale do Capão integram um subconjunto da variada fauna de visitantes. Apesar da exígua população – dois mil moradores em períodos normais – encontram-se brasileiros oriundos dos mais diversos estados, facilmente identificáveis pelo sotaque. Mas há, também, uma surpreendente fauna de estrangeiros.
Argentinos, uruguaios e chilenos são os mais comuns, embora colombianos e peruanos não sejam raros. Mas há europeus também, que inclusive fixam residência: franceses adquirem lotes, austríacos renegam a vida pretérita seduzidos pelas belezas naturais, espanhóis e italianos sentem-se atraídos pelos encantos do Brasil profundo. Nem sempre permanecem: nômades, muitos migram lá adiante, sequiosos por novos deslumbramentos.
Os alternativos – nacionais e estrangeiros – cultivam uma filosofia singular de vida nesses tempos de consumismo desenfreado, desfrutando de uma rotina frugal, mas intensa.  Consomem pouco e ocupam-se em funções modestas, mais ajustada àqueles que valorizam a contemplação.
Feira-livre
A convergência entre nativos, alternativos e o turista convencional se dá aos domingos, na aguardada feira-livre. Lá, todas as tendências convergem nos tabuleiros e nas barracas: o artesanato criativo – pulseiras, colares, tiaras e outros adereços – que atrai o visitante convive com bancas que exibem tomates, cebolas, pimentões, pepinos, berinjelas e hortaliças que abastecem os nativos; acessórios para celular e cd’s de arrocha seduzem jovens locais e não falta quem consuma até comida oriental entre as barracas.
Tabaréus com chapéus surrados, que vendem utensílios de barro – tachos e panelas rústicas – compartilham o calçamento com alternativos do sul da América do Sul que, tranquilamente, sorvem chimarrão nas frias manhãs de inverno. Esses se comunicam no inconfundível sotaque italianado dos platinos.
A feira-livre, com sua cadência própria, regula a economia dos nativos que mantêm restaurantes especializados em comida caseira, acanhados mercadinhos que abastecem despensas domésticas, agricultores modestos e as centenas de prestadores de serviços no ramo turístico. Todos reclamam dos preços, elevados para os padrões de renda dos nativos.
À volta dessa faina produtiva, os indescritíveis paredões verdes de vegetação e mata que tornaram badalado o lugarejo remoto. No Vale do Capão, a vida pulsa sob a incessante e cristalina trilha sonora das cachoeiras que se desprendem, caprichosas, dos morros vertiginosos. Onipresente e rara – lá, a escassez hídrica é uma ameaça iminente – a água ferruginosa que escorre pelas pedras é, talvez o maior símbolo daquele recanto inesquecível da Bahia. 

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