Amanhã
é 19 de abril, Dia do Índio. Lembro das celebrações escolares na década de
1980. Naquele tempo, a garotada pintava o rosto e saía com penachos de papel e
cartolina, em desfiles marciais pelas ruas ensolaradas do Sobradinho. Até
então, os índios ainda figuravam como parte da identidade nacional. Hoje,
coitados, fanáticos querem convertê-los à força ao cristianismo farisaico que
se vê aí na praça; garimpos ilegais violam suas reservas; criminosos extraem
madeira impunemente e a Covid-19 avança como mais recente flagelo.
Mas,
até para preservar a sanidade, é bom lembrar também de coisas alegres, do que é
vida e exaltação da vida. Afinal, 19 de abril é a data de nascimento de Manuel
Bandeira. Há exatos 135 anos, em 1886, o poeta – um dos mais importantes do
século XX – nascia no Recife. Mas foi no Rio de Janeiro que ele passou boa
parte da vida. Lá produziu sua obra, contribuindo para firmar a capital
fluminense no imaginário da poesia brasileira.
Há
três décadas deparei-me com sua poesia nas aulas de Literatura Brasileira. Li
“Evocação do Recife”, “Vou-me embora pra Pasárgada”, “Pneumotórax”, “Os Sapos”,
e outros, e outros. Mas foi “Profundamente” que me impressionou mais vivamente.
O duro contraste da festa de São João, que é o símbolo maior da alegria do
nordestino, com a melancolia e a tristeza dilacerantes daqueles versos me
desconcertou.
Na
noite da véspera do São João de 1992 saí com aqueles versos na cabeça,
chamejantes: “Quando ontem adormeci/Na noite de São João/Havia alegria e
rumor/Estrondos de bombas luzes de Bengala/Vozes cantigas e risos/Ao pé das
fogueiras acesas”.
Mais
adiante, vinha o vívido contraste: “No meio da noite despertei/não ouvi mais
vozes nem risos/Apenas balões/Passavam errantes/Silenciosamente (...) Onde
estavam os que há pouco/Dançavam/Cantavam/E riam/Ao pé das fogueiras acesas?”.
Desci
o aclive suave da rua Arivaldo de Carvalho, tomei a Voluntários da Pátria e
subi o Nagé. Enxergava as nuvens cinzas que a fumaça e as luzes dos fogos
avermelhavam; poucas fogueiras acesas, o licor de jenipapo, a triste teimosia
de quem sustentava a tradição e resistia aos chamativos forrós em São José; no
céu, às vezes, a chama fosca de um balão que passava errante,
silenciosamente...
Açoitado
por uma platônica paixão juvenil segui em frente, transpus a Praça Froes da
Mota, deserta, escura e silenciosa. Foi então que no começo da Sales Barbosa me
deparei com uma mendiga que dormia um sono profundo defronte à porta de uma
loja. Os versos de “Profundamente” cintilaram novamente, num estalo: “ –
Estavam todos dormindo/Estavam todos deitados/Dormindo/Profundamente”.
Retive
a marcha para fixar aquelas lembranças: o céu avermelhado, denso de nuvens; a
luz metálica, opaca, triste, dos postes de iluminação; o vigia na esquina
seguinte, estupefato com a inesperada presença daquele pedestre; e o rosto
sereno da mendiga, que dormia indiferente aos balões, aos fogos, às fogueiras,
às celebrações juninas. Aquilo – acalentava com as furiosas ambições juvenis –
tinha que render uma literatice qualquer.
Depois,
em casa, voltei a Manuel Bandeira e o impulso inicial esfriou. Faltava-me estofo
para aquela empreitada. Mas nunca esqueci daquele mote literário: o sono solto
da mulher, despreocupado, indiferente; o silêncio e a solidão daquelas
artérias, enquanto todo mundo celebrava, distante; um ou outro balão,
silencioso no céu sanguíneo; e, sobretudo, a força daqueles versos que
invocavam vozes, cantigas e risos – reais e imaginários – e, em mim, o pesar
daquilo que não se viveu...
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