“Tudo se desarticulava,
sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa
bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande
homem [...]. Uma beatice exagerada queimava incenso defumando letras e artes
corrompidas, e a crítica policial farejava quadros e poemas, entrava nas
escolas, denunciava extremismos”.
Não,
não fui pescar a frase acima em nenhum autor contemporâneo. É que a frase parece
se referir à trajetória do Brasil desde, pelo menos, 2016. Até mesmo a alusão a
Mussolini não parece deslocada no tempo. Quem lê tem a sensação de que,
adiante, vai se deparar com referências à “escola sem partido” ou às invasões e
censura a exposições artísticas realizadas há pouco tempo. Mas não. Vamos
adiante:
“Um professor era chamado à
delegacia: - ‘Esse negócio de africanismo é conversa. O senhor quer inimizar os
pretos com a autoridade constituída’”.
Vá
lá que os professores ainda não começaram a ser intimados às delegacias. Pelo
menos por enquanto. Mas já são hostilizados, ofendidos e taxados de
“comunistas” por aloprados, cuja pouca inteligência é erodida pelo fanatismo.
Mais adiante um pouco:
“O Congresso apavorava-se,
largava bambo as leis do arrocho – e vivíamos de fato numa ditadura sem freio.
Esmorecida a resistência, dissolvidos os últimos comícios [...] escritores e
jornalistas a desdizer-se, a gaguejar, todas as poltronices a inclinar-se para
a direita, quase nada poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros”.
Aí
já parece a descrição do futuro que lunáticos, mentecaptos, aloprados,
ressentidos e muitos espertalhões almejam desde sempre. Não que já não haja
leis draconianas sendo aprovadas, nem profissionais da imprensa intimidados.
Também não é preciso mencionar a mansidão dos carneiros que está aí, à vista de
quem quiser ver.
Há
também projetos para a cultura que já se insinuaram, mas que, por enquanto,
permanecem como meros esboços. É o que trecho seguinte parece descrever:
“A literatura fugia da Terra,
andava num ambiente de sonho e loucura, convencional, copiava figurinos
estranhos, exibia mamulengos que os leitores recebiam com bocejos e indivíduos
sagazes elogiavam demais. O romance abandonava o palavrão, adquiria boas maneiras,
tentava comover as datilógrafas e as mocinhas”.
Quem
escreveu essas palavras que um desatento consideraria proféticas? Graciliano
Ramos, o genial escritor alagoano que nos legou “Memórias do Cárcere”. As
frases acima foram extraídas do primeiro volume da obra. Nele, o autor descreve
sua experiência por prisões de Maceió, do Recife e do Rio de Janeiro em 1936.
Naquela época, Getúlio Vargas costurava o golpe que viria à tona no ano
seguinte. Mas já empregava, largamente, recursos típicos de regimes de exceção.
Hoje,
o triste Brasil parece se inclinar para mais uma catastrófica aventura do
gênero, conduzida por mais um ridículo candidato a tirano. Seria muito bom
descrever, aqui, as expectativas em relação à Semana Santa, mesmo com as
restrições impostas pela pandemia. Mas não há clima para isso, porque o
noticiário nacional é alarmante.
O
que nos resta? Ler Graciliano, aprender com Graciliano...
Comentários
Postar um comentário