Pular para o conteúdo principal

Uma singular inspiração literária sobre o isolamento social

 

“Preso experiente analisa com vagar cada cela por onde passa. Pode haver recado nas paredes, esconderijo no colchão, fundo falso em algum lugar. Aproveitar minúcias e insignificâncias é uma das regras da cadeia, onde não há fartura e facilidades. De cada canto pode sair uma história oculta ou uma nova ideia”.

O trecho acima é do livro “Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho”. O autor é William da Silva Lima – considerado pela polícia um dos fundadores da facção – falecido há quase dois anos. A edição de que disponho é de 1991, lançada pela Editora Vozes, em parceria com o Instituto de Estudos da Religião, o ISER.

William passou boa parte de sua vida no cárcere. Mas, mesmo enfrentando as adversidades da cadeia, sempre foi uma figura singular. Uma evidência foi sua capacidade de produzir um dos melhores livros sobre a realidade das prisões brasileiras. Muito bem escrita, a obra narra sua experiência, ao longo de décadas, em diversas cadeias do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Nestes tempos pandêmicos, li e reli muitos livros, inclusive “Quatrocentos contra um”. Nele, encontrei semelhanças entre as experiências de quem se defronta com o cárcere e o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19. É claro que, da cadeia, não se sai, a tranca é inflexível. Mas os prolongados períodos vividos dentro de casa despertam sensações e ideias semelhantes àquilo que se lê no trecho transcrito no começo do texto.

Quem vive uma rotina agitada – extensas jornadas de trabalho, compromissos sociais, viagens constantes – às vezes se sente hóspede na própria residência. O home office e a redução de deslocamentos subverteram este estranhamento. Nos intervalos de trabalho examinam-se paredes, móveis e objetos, sorve-se a paisagem a partir da janela, presta-se atenção a minúcias e insignificâncias que, noutras circunstâncias, passariam despercebidas.

O casario da Queimadinha, o vale que conduz ao rio Jacuípe, as fachadas dos prédios no centro da cidade, a Avenida Contorno apenas intuída, tudo exibe uma novidade a cada dia. É a estação climática com sua luminosidade particular, é o céu coberto de nuvens baixas, é a chuva constante ou o calor inclemente: tudo muda a paisagem, que se expõe com um ininterrupto suceder de pequenas novidades.

Falta-nos a fartura e a riqueza dos contatos sociais, as facilidades que a rotina que precedeu a pandemia oferecia e que não conseguíamos enxergar, ou não valorizávamos o suficiente. Apega-se, então, a minudências, a detalhes. Assim, por enquanto, vai-se vivendo do jeito que dá, já que o desgoverno lá no Planalto Central desdenhou as vacinas e a imunização segue lenta, arrastada.

Há sufoco até para garatujar um texto qualquer no teclado do computador. Falta a vivência inspiradora, o contato que sempre rende histórias – e, às vezes, até estórias – interessantes. Mesmo que, aqui ou ali, do isolamento, se extraia uma história oculta ou uma nova ideia, a partir de insignificâncias. Mas, para quem vai sobrevivendo, é necessário perseverar.

Perseverar e pressionar pela vacinação.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada fei...

Placas de inauguração contam parte da História do MAP

  Aprendi que a História pode ser contada sob diversas perspectivas. Uma delas, particularmente, desperta minha atenção. É a da Administração Pública. Mais ainda: a dos prédios públicos – sejam eles quais forem – espalhados por aí, Brasil afora. As placas de inauguração, de reinauguração, comemorativas – enfim, todas elas – ajudam a entender os vaivéns dos governos e do próprio País. Sempre que as vejo, me aproximo, leio-as, conectando-me com fragmentos da História, – oficial, vá lá – mas ricos em detalhes para quem busca visualizar em perspectiva. Na manhã do sábado passado caíram chuvas intermitentes sobre a Feira de Santana. Circulando pelo centro da cidade, resolvi esperar a garoa se dispersar no Mercado de Arte Popular, o MAP. Muita gente fazia o mesmo. Lá havia os cheiros habituais – da maniçoba e do sarapatel, dos livros e cordeis, do couro das sandálias e apetrechos sertanejos – mas o que me chamou a atenção, naquele dia, foram quatro placas. Três delas solenes, bem antig...

Patrimônio Cultural de Feira de Santana I

A Sede da Prefeitura Municipal A história do prédio da Prefeitura Municipal de Feira de Santana começou há 129 anos, em 1880. Naquela oportunidade, a Câmara Municipal adquiriu o imóvel para sediar o Executivo, que não dispunha de instalações adequadas. Hoje talvez cause estranheza a iniciativa partir do Legislativo, mas é que naqueles anos os vereadores acumulavam o papel reservado aos atuais prefeitos. Em 1906 o município crescia e o prédio de então já não atendia às necessidades do Executivo. Foi, então, adquirido um outro imóvel utilizado como anexo da prefeitura. Passaram-se 14 anos e veio a iniciativa de se construir um prédio único e que abrigasse com comodidade a administração municipal. Após a autorização da construção da nova sede em 1920, o intendente Bernardino Bahia lançou a pedra fundamental em 1921. O engenheiro Acciolly Ferreira da Silva assumiu a responsabilidade técnica. No início do século XX Feira de Santana experimentou uma robusta expansão urbana. Além do prédio da...