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A mitologia dos valentões de araque

 O começo da tarde de sábado escorria banal. No boteco tradicional no centro da Feira de Santana uns grupos bebiam, outros já almoçavam. Os sons dos talheres, dos pratos, dos risos e das conversas realçavam aquela normalidade. Lá fora tudo normal também: os automóveis avançavam sobre os paralelepípedos e os pardais piavam nos telhados, nas árvores escassas, saudando o sol preguiçoso de outono.

Foi quando a figura apareceu, deslizando silenciosa feito espectro. Entrou no boteco, examinou as mesas, – uns não o notaram; outros fingiram não vê-lo – espichando o olho que brilhava, arisco. Tudo nele era opaco: a pele e os cabelos encardidos, impregnados de sujeira, as roupas andrajosas. Só o olho cintilava, muito vivo, arguto. Por fim, estendeu a mão suja, carcomida pelo provável manuseio contínuo do cachimbo do crack e me abordou:

– Tio, me consegue um trocado para eu comprar comida! Estou com fome!

Recusei. Ele, então, olhou fixo lançando uma chispa de ódio e foi saindo. Deslizava silencioso, da mesma forma como entrou. Assim que o infeliz usuário de crack sumiu, o valentão levantou. Começava, ali, um espetáculo singular.

Cerrou e descerrou os punhos, como quem se prepara para uma refrega; franziu o cenho, insinuando concentração naquela batalha imaginária; até movimentou as pernas, como o fazem esses lutadores quando sobem no ringue. Depois – sua plateia se resumia a dois idosos, arquetípicos herdeiros da Feira rural, assumidamente saudosos dos “bons tempos” – discorreu sobre como trucidaria o tipo andrajoso:

– Se eu pego um vagabundo desses não ia sobrar nada! Primeiro eu imobilizava e depois eu quebrava ele no pau!

Confesso que até achei graça daquela valentia tardia. O tipo encarou aquilo como um incentivo e requintou-se nos detalhes, até resfolegava, imerso naquela batalha mental. Depois sentou, exausto. Aí os idosos assumiram a palavra. Enveredaram numa interminável defenestração dos pobres, dos excluídos.

Lembrei deste episódio – foi há uns dois anos – acompanhando as sessões da CPI da Pandemia no Senado. Outrora valentes, destemidos, audazes, intrépidos, os acólitos de Jair Bolsonaro, o “mito”, amunhecaram nos depoimentos. Alguns estão irreconhecíveis: voz sumida, sorrisos tímidos, olhares aflitos, cordialidade em excesso. Só não mudaram numa coisa: seguem mentindo compulsivamente.

Os valentões destes tempos tormentosos são bem assim: quando em vantagem, estiram-se; qualquer reação enérgica, porém, acovarda-os. Aí fazem-se de vítimas, choramingam, lacrimejam, patéticos. Em bando, armados, contra os mais frágeis, agigantam-se; quando fustigados, encolhem-se, tremem, pusilânimes.

Quando chegaram ao poder eram machos, arrotavam valentia. Agora a aura de destemidos também vai ruindo. O exemplo mais patético é o do próprio “mito”: acossado, vomita sandices, ameaça, insinua golpe toda semana, arrota uma coragem que sua hesitação desmente. Noutras circunstâncias, isso seria motivo de deboche, renderia piadas. Mas não com as centenas de milhares de mortos da pandemia, nem com a economia em frangalhos.

Pior é saber que ninguém tem ideia de quando este pesadelo terá um fim. 

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