Pular para o conteúdo principal

A celebração do golpe e a cortina de fumaça

Pretendiam comemorar, no próximo dia 31 de março, o aniversário de 55 anos do golpe militar. Na verdade, tratou-se de uma quartelada, desfechada em 1º de abril de 1964. Para evitar associação com o folclórico dia da mentira, anteciparam a data, para efeito de historiografia oficial. Bastaram, portanto, umas poucas horas para a verdade começar a ser distorcida no regime que despontava. Agora, flertaram ressuscitá-lo, provavelmente com aquelas intragáveis celebrações.
A determinação foi do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL-RJ), segundo revelaram auxiliares à imprensa. Depois ele desmentiu. Não faltou quem especulasse, na oposição, se a ideia não era uma tentativa de tergiversar, desviar o foco do sofrível governo que, até aqui, não mostrou a que veio. Manobra ou não, o fato é que se tratava de uma inquietante demonstração de simpatia pelo arbítrio, pelos regimes de exceção.
O mais estarrecedor foi o pretexto utilizado para justificar a excentricidade. Informou-se que o presidente “não considera” a quartelada um golpe. Como se todas as atrocidades cometidas no regime pudessem ser apagadas; como se as perseguições, os assassinatos, as torturas e o silêncio sufocante pudessem ser revogados, esquecidos; como se – o que é mais estarrecedor – houvesse razões para abolir a democracia e instituir o arbítrio e a anarquia militares.
Esse primeiro – e perigoso – passo não pode ser ignorado, mesmo com o recuo. Porque senão, lá adiante, alguém pode achar que o Estado deve adotar, novamente, uma religião oficial; que a abolição da escravidão foi um erro e deve ser revogada; ou, mais prosaicamente, que a própria terra é plana, conforme advogam alguns birutas de plantão.

Destruição

Mas, talvez, no fundo, o absurdo não passe de mera cortina de fumaça. Com ela, desvia-se a atenção das demais barbaridades em andamento, como a reforma da Previdência que suprime direitos elementares do trabalhador, mas amplia os privilégios da casta militar encastelada no poder. Ou do rearmamento da população, que vai aumentar a violência e as mortes, sobretudo de quem é pobre.
Serve, também, para encobrir os absurdos no Ministério da Educação – cujo chefe, um colombiano, indicado por um ex-astrólogo, patina em idas-e-vindas sobre nomeações e decisões administrativas, às vezes, até comezinhas – que ninguém sabe que rumo vai tomar. Se é que eles próprios sabem, é claro, que rumo será esse.
A polêmica também ajuda a encobrir a ausência de perspectivas em relação à economia. Basta aprovar a draconiana reforma da Previdência para restabelecer-se o crescimento? Pelo jeito, é o que insinuam. Enquanto isso, o desempregado, o biscateiro – a palavra caiu em desuso depois que todo mundo virou “empreendedor” – e o jovem recém-formado seguem sua árida marcha em busca de oportunidades.
Debatendo o regime, esquecem-se, também, os laranjais, as milícias e as pitorescas transações imobiliárias. Enfim, para alguns, resgatar um passado desconcertante é um excelente artifício para camuflar o presente turbulento e aziago. Mesmo que se desminta essa tentativa logo lá adiante, como já aconteceu...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express