“Bom dia pessoal !!!
Desculpe interromper o silêncio e a tranquilidade da viagem de vocês. Estamos aqui
trazendo os deliciosos...”. Quem circula de ônibus costuma ouvir a mesma frase
que, mais adiante, vai se traduzir na oferta do produto que o ambulante exibe.
A frase curta foi se tornando comum em Salvador, na primeira metade da década
passada; depois, transpôs fronteiras, chegou à Feira de Santana, mas não parou
por aí. Até em São Paulo, naqueles ônibus articulados que trafegam pela avenida
Santo Amaro, já ouvi a frase familiar, com ligeiras alterações.
Salvador, cujo drama
desemprego é endêmico, hospeda uma fauna admirável de ambulantes. Descontando a
tragédia pessoal do trabalho precário, muitos renderiam matérias anedóticas do
jornalismo de entretenimento.
Os “deliciosos” produtos
apregoados costumam variar bastante. Nos dias quentes – sobretudo nos verões
incandescentes – ofertam-se água, picolés, sucos artificiais, refrigerantes e
até cerveja. As tradicionais caixas de isopor ou baldes com gelo costumam
abrigar a mercadoria. Não falta vendedor que advirta, didaticamente, para a
necessidade de hidratação nos períodos mais tórridos.
Quem anuncia que
“chegou o passatempo da viagem” – outro pregão clássico – invariavelmente
mercadeja algo que ajuda a tapear a fome. Chocolate, amendoim processado,
biscoitos e barras de cereais figuram entre os produtos mais comuns. Dois
argumentos são corriqueiros: o preço mais em conta – as comparações com
bombonieres e lanchonetes são inevitáveis – e, como atestado de lisura, recomendam
que o cliente observe o prazo de validade na embalagem.
Baleiros
Tradicionais
Há também os baleiros
tradicionais. Esses só vendem balas, chicletes, jujubas, pastilhas e pés-de-moleque
que muitos subvertem para “pé de moça”. Baldes ajudam a transportar a
mercadoria miúda e bojudas pochetes acomodam uma infinidade de moedas. Muitos
circulam ostentando o colete que a prefeitura esporadicamente padroniza.
A maioria embarca,
lança os pregões tradicionais, vende, arrecada, agradece ao motorista e
desembarca na primeira oportunidade. É visível que não nutrem grande apego pelo
ofício, que encaram mais como estratégia para driblar o desemprego, conforme
admitem no breve discurso inicial.
Outros incorporam a
rotina à própria identidade. Um deles, metodicamente, oferece balas a todos os
passageiros com voz sussurrante. Óculos de grau, cabelos desalinhados e tique
recorrente modelam o aspecto do fã de Raul Seixas que, em certa manhã
soteropolitana de calor intenso, parafraseou um verso do roqueiro baiano: “...a
lua está bem alta e o sol intensidade”.
Outro, idoso já
aposentado, conforme admite, também vende balas. Mas só depois de uma aula
improvisada de anatomia e de piadas imprevistas que acabam divertindo os
passageiros imersos na rotina feroz da cidade grande. Quem o vê, o considera
mais feliz exibindo seus conhecimentos que, propriamente, vendendo balas.
Versículos
bíblicos
“... só segurando o
produto você já incentiva o nosso trabalho”, apregoam alguns, que constrangem
os passageiros a segurar suas mercadorias. Alguém, no passado distante, ensinou
a algum ambulante que entregar o produto favorece as vendas. Como receita
universal, é estratégia furada. Muitos ficam aporrinhados e não falta quem,
discretamente, afane a mercadoria no ônibus lotado.
Versículos da Bíblia,
bênçãos, profecias e discursos religiosos também servem como estratégia. Muitos
louvam as vitórias e a prosperidade que Deus garantiu em suas vidas, embora
estejam ali, padecendo sob precariedade absoluta. Perdem pouco tempo exaltando
as virtudes dos seus produtos, certamente apostando no apelo religioso.
A fauna dos baleiros
em Salvador é exótica e variada. É difícil determinar a origem desse serviço precário,
inseguro, impulsionado pela escassez de oportunidades. Mas, certa vez, ouvi um
baleiro conversando com colegas de ofício, ali nas imediações das Sete Portas:
“Consegui construir uma casa vendendo bala. E com primeiro andar”, afirmava, orgulhoso
da dedicação ao seu ofício.
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