Recorro, mais uma vez,
a João, aquela personagem fictícia que criei num texto anterior. Hoje ele tem
nova missão: será protagonista no cenário da famigerada PEC do Teto de Gastos.
Aquela mesma que foi aprovada no Senado essa semana. Tumultuada, a sessão foi marcada
por incontáveis arroubos cívicos das excelências que foram favoráveis à medida.
A partir daqui, acione-se o cronômetro que fará a contagem regressiva para o
colapso dos serviços públicos num futuro próximo. Isso se, antes, não acontecer
uma convulsão social.
A chamada grande
imprensa passou os últimos dias alardeando que a PEC iria “limitar os gastos
públicos” e “conter a gastança do setor público”. Mentira: nessa armadilha,
ficam de fora os juros da dívida pública, porque simplesmente não há limite
para esse tipo de despesa na esperta medida redentora.
O governo, portanto,
vai retirar recursos da saúde, da educação, da assistência social e da
previdência para remunerar o capital financeiro. É dinheiro que sai dos
serviços essenciais prestados à gente sofrida para as algibeiras dos
banqueiros. Significa uma espécie de distribuição de renda às avessas, na qual
quem tem pouco fica com quase nada e quem tem muito fica com praticamente tudo.
Para justificar a
medida, saem com o argumento malandro que saúde e educação terão, pelo menos, a
reposição da inflação nos próximos anos. Também não passa de empulhação. Com a
crise, a arrecadação caiu drasticamente. Lá adiante, com a retomada, essa
arrecadação começa a crescer em termos reais, acima da inflação. Os repasses
para os serviços públicos, porém, permanecerão congelados, acompanhando a
inflação. Logo, haverá uma sobra em termos de recursos.
Para onde vai esse
dinheiro? Para os bolsos dos banqueiros. Serão 20 anos de arrocho, com
consequências sociais bastante previsíveis: redução ou suspensão nos serviços
públicos, arrocho sobre servidores e precarização nas condições de trabalho. Se
não houver reações, em breve, regrediremos aos patamares de países africanos em
guerra.
É claro que a gastança
sem freios do governo Dilma Rousseff (PT) era insustentável. O problema é que,
num átimo, o País migrou de um extremo a outro. O novo regime não tem
legitimidade eleitoral e alveja justamente os mais pobres.
E
João?
Caso o leitor não
recorde, João tem 18 anos, é afrodescendente e mora na periferia da Feira de
Santana. Ajusta-se perfeitamente ao perfil dos que serão fustigados pela
festejada PEC do Teto de Gastos. Mas não apenas por ela: está aí, à mesa, a
proposta de reforma da Previdência que vai condenar João a trabalhar pelos
próximos 50 anos, no mínimo; e vem aí o que ainda falta no tripé da revogação
dos direitos mais elementares dos brasileiros: a reforma trabalhista.
Enquanto os dedos
batucam o texto, penso no que posso fazer por esse João fictício que vai sofrer
horrores pelos próximos 50 anos. Sinceramente, não enxergo perspectivas:
poderia amenizar suas dores tornando-o torcedor do Fluminense de Feira; poderia
fazê-lo fã do pagode, do sertanejo universitário, distraí-lo com redes sociais
ou com programas de televisão.
Mas isso não resolve, João vai permanecer à margem
da sociedade, exposto ao risco de se tornar, quem sabe, um marginal. Afinal, o
que não falta são facções recrutando garotos para o crime Brasil afora. Nas
periferias esquecidas, são as únicas instituições que alcançam os excluídos,
descontando a polícia e as igrejas.
Resisto. E prefiro imaginar
um futuro mais nobre para João. Creio que vou vê-lo despertar, aos poucos, para
a realidade que o cerca, sem sucumbir ao desespero. Aposto, até, que as agruras
que se desenham vão contribuir para que o brasileiro resgate o senso coletivo
que foi se diluindo ao longo das últimas décadas. João, espero, vai acabar
arrebatado por esse incipiente espírito de luta. É, certamente, um sonho. Mas é
isso ou a barbárie sem nenhum pudor.
Comentários
Postar um comentário