João
é personagem fictício: criei-o agora, na abertura desse texto, para ilustrar a
temerária reforma da Previdência encaminhada para o Congresso Nacional essa
semana. Não faz mal: João tem tantas características em comum com milhares de
pessoas que, provavelmente, o leitor vai considerá-lo familiar, quase
conhecido. Pra começar, João é feirense e, portanto, brasileiro; jovem: mal
completou os 18 anos; é pardo, reside na periferia e frequenta a rede pública
de educação.
João
procura emprego: apesar da idade, ainda não concluiu o ensino médio; até aqui,
só conseguiu alguns bicos, temporários e precários, que lhe renderam alguns
trocados para ajudar nas despesas domésticas. Os impactos da crise já lhe são
familiares: conhece muita gente que perdeu o trabalho modesto ao longo desses
dois anos de intensas agruras econômicas.
Agora,
João tem ouvido dizer que a Previdência vai sofrer mudanças. O que se fala é
que pobre não vai mais ter direito à aposentadoria.
Num
cálculo rápido, ele constatou que precisará trabalhar até 67 anos para
conseguir se aposentar com aposentadoria integral: quase meio século de labuta.
Isso num cenário otimista, se ele conseguir emprego imediatamente: apesar das
dezenas de currículos despachados para diversas empresas, nada de convocação
para entrevistas.
Aposentadoria é
utopia
Desanimador
é pensar que, ao longo desse meio século, João provavelmente vai trocar de
emprego inúmeras vezes; nesses intervalos, deve ficar sem contribuir para a
Previdência, retardando o sonhado descanso na velhice. Tudo indica que
aposentadoria integral, para ele, não vai passar de utopia.
A
luta de João, portanto, não vai ser para desfrutar de proventos integrais, mas
para alcançar os 25 anos mínimos de contribuição. Calcula mentalmente e
constata que, mesmo esse feito, vai ser difícil: em 47 anos, precisará de um
quarto de século de contribuição. É muita coisa num País cujo mercado de
trabalho é tão instável.
Afinal,
João já se vê tentado a vender mídia pirata de músicas e filmes pelos bares da
Feira de Santana; com sorte, pode se tornar um desses vendedores de
quinquilharias importadas da China, com banquinha no centro da cidade; caso dê
tudo errado, vai prestar pequenos serviços, esporadicamente, na condição de
biscateiro. Nada disso é emprego formal, seguro, que garanta o recolhimento da
Previdência.
Desse
jeito, João é forte candidato a se tornar, no futuro distante, um velho
paupérrimo, à cata de pequenos biscates, caso a saúde permita. Se sobreviver –
hipótese nem tão provável – poderá requerer benefício social, inferior ao
ínfimo salário-mínimo, caso alcance os 70 anos. Mas tudo conspira para que João
fique pelo caminho, morra antes.
Mendigando
atendimento
Trabalhador
informal, pobre, João não vai pagar plano de saúde. Terá que mendigar o
atendimento da rede pública. Só que essa vai oferecer serviços cada vez mais
precários, em função da PEC do teto de gastos, que ao longo de 20 anos vai
promover um tremendo arrocho sobre a saúde pública. Um problema mais grave pode
condená-lo à morte nalgum corredor de hospital, como já é rotina Brasil afora.
Com
certeza João vai passar a vida dependendo de algum benefício social, como o
Bolsa Família, que tende a ser enxugado, tornando-se privilégio dos
apadrinhados dos políticos. Não se duvide que ele se veja forçado a fazer
biscates para manter o parco rendimento, por força de alguma lei. Já existe
algo do gênero tramitando na Câmara dos Deputados.
João
ainda não descobriu, mas no início da vida viveu uma trégua rara nas agruras
impostas ao mais pobres no Brasil: valorização do salário-mínimo, ampliação de
benefícios sociais e investimentos em políticas sociais – mesmo que manquitolas
– que beneficiaram os mais pobres, como as cotas e os programas de habitação.
Essa
trégua, como se percebe, findou. A austeridade e os sacrifícios serão impostos exclusivamente
aos mais pobres. Mas isso João nunca vai saber. Está aí a imprensa dizendo o
contrário, o dia todo. Restará a ele a infindável labuta imposta à patuleia
desde a Colônia.
Trabalha, João, pra ajudar
o Brasil a se desenvolver !!!
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