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As cidades gêmeas às margens do São Francisco

Cresci ouvindo, no fim da tarde, um programa de rádio que só tocava forró. Era na Rádio Sociedade de Feira, no começo dos anos 1980. Por lá desfilavam os clássicos deste ritmo genuinamente nordestino: Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, Jackson do Pandeiro e outros e outros talentos. Lembro que meu pai ligava o velho aparelho de rádio – daqueles grandes, de madeira, no qual depois em ouvi as grandes vitórias do Bahia – e o som inconfundível da sanfona, da zabumba e do triângulo invadiam a sala, já imersa na meia-penumbra.

Foi numa daquelas tardes que ouvi, pela primeira vez, “Juazeiro e Petrolina”. Quem cantava? A versão era do Trio Nordestino, então no auge. Fiquei encantado com duas cidades unidas por uma ponte, cortadas pelo mítico rio São Francisco. E em dois estados diferentes, Bahia e Pernambuco. Mais ainda quando meu pai revelou que conhecera as duas cidades em suas andanças profissionais. Nasceu, então, a convicção infantil de que um dia eu visitaria aquelas cidades mágicas, que no fundo são uma só.

Atravessei a ponte pela primeira vez numa madrugada insone, num ônibus, em dezembro de 1997. Vi o casario de Juazeiro, as luzes frágeis tangendo a escuridão, fui intuindo a ponte quando o ônibus enveredou por um elevado ali nas imediações do centro da cidade, deserto e silencioso. Então vi a estrutura antiga, cinzenta e metálica da afamada ponte, cantada por tantos artistas célebres. Lembrei, até, de “O Ciúme”, imortalizada na voz de Maria Bethânia. Mas o que ressoava no silêncio era a lembrança do forró contagiante do Trio Nordestino.

Depois voltei muitas vezes a Juazeiro e a Petrolina. O encantamento por aquelas cidades siamesas cresceu. Conversando com a gente de lá, descobri que as cidades irmãs se integram numa simbiose rara. De um lado, Petrolina com seu comércio sofisticado, seus prédios modernos, sua elite que assume ares cosmopolitas. Do outro, Juazeiro fervilhante, com seu comércio popular, seus subúrbios modestos, sua agitação tipicamente nordestina. Em ambas, dos dois lados, baianos e pernambucanos refletem essa simbiose.

Juazeiro lembra a muito Feira de Santana na sua vocação andarilha, movida pelo automóvel, pelo ir-e-vir, pelos deslocamentos, pelas viagens, por aquele desassossego de quem não pode aquietar o facho em canto nenhum. O trânsito incessante, as placas indicando destinos longínquos, a azáfama de quem viaja, a fronteira com Pernambuco logo ali, tudo isso é a agitação e o movimento dos viandantes.

Os restaurantes da orla fluvial de Juazeiro – come-se, ali, um suculento bode na brasa acompanhado de cervejas impecavelmente geladas – atraem visitante que ali podem apreciar, com vagar, aquela imensidão. A areia branca da orla de Petrolina, o tom esverdeado do Velho Chico – é assim que o rio é carinhosamente batizado –, o céu de um azul esbranquiçado, a cor pálida da caatinga inextrincável à distância: tudo isso se agarra à memória do viajante.

Ali no meio do rio, entre as duas cidades, existe uma ilha. O verde, frondoso, se encarde com a poluição dos escapamentos. Espichando o olhar para lá adiante, quando escasseiam os casebres que ornamentam as periferias, resgata-se uma inóspita vegetação catingueira, que se perde nos volteios caprichosos do rio São Francisco. Muito mais adiante, na direção de quem vai desbravar o mar apenas imaginado, há um morro curto, azul, perdido na distância e no silêncio.

Nos bares e restaurantes da orla pluvial também circula a elite local – com suas caminhonetes, suas roupas de grife, seu imutável papo sobre bens, sobre poder –, mas a fauna humana exige o esforço de uma nova crônica. Essa aqui apenas resgatou umas lembranças infantis, outras longínquas, e serviu para apaziguar o feroz apetite viajante do cronista, frustrado nesses tempos de pandemia do novo coronavírus.

 


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