Ontem
(14) aconteceu a procissão de Nossa Senhora da Boa Morte, em Cachoeira, um dos
pontos altos das celebrações que se estendem por uma semana. Até a sexta-feira
(17) o município vai continuar mobilizado pelos festejos seculares, que
harmonizam a ancestral cultura religiosa de matriz africana com os ritos
católicos legados pelos colonizadores portugueses. Transbordante de cultura,
densa em História, palco de memoráveis mobilizações nas jornadas da
Independência da Bahia, dotada de rico patrimônio arquitetônico, Cachoeira vive
no mês de agosto uma das suas mais intensas semanas.
Uma
chuva miúda – uma quase imperceptível garoa – ameaçou encorpar, mas se dissipou
no início da noite, para alívio da multidão que aguardava a procissão. E o
cortejo saiu da sede da Irmandade da Boa Morte, após a missa, percorrendo
algumas das principais ruas de Cachoeira – a rua Treze de Maio, com seus
casarões solenes de dois pavimentos, muitas janelas e sacadas estreitas, o
largo da 25 de Março, fervilhante arena boêmia – acompanhado pela multidão
silenciosa.
As
tradicionais filarmônicas cachoeiranas – multicampeãs de incontáveis desfiles
Bahia afora – marcam presença, produzindo a trilha sonora solene, compatível
com a sisudez da solenidade. E as irmãs da Boa Morte, com suas velas acesas,
seus trajes escuros, seus seculares preceitos religiosos, marcham acompanhadas
pela multidão deslumbrada, reforçada pelos visitantes que vêm das cercanias e
de destinos longínquos conhecer a tão comentada procissão.
O
andor – recoberto por diáfanos tecidos brancos – contrasta com a escuridão que
as luzes opacas dos postes não espantam, com os trajes escuros dos fieis. Festiva,
porém, é a luz das torres das igrejas, cujos sinos badalam, incessantes,
emprestando um tom alegre à celebração, mobilizando o rebanho católico. Pés
ansiosos avançam pelo calçamento liso, luzidio, à medida que o cortejo
serpenteia pelas artérias impregnadas de passado.
O
cheiro denso do incenso impregna o ar. Gente fotografa, cinegrafistas buscam
ângulos apropriados, alguns se atropelam no frenesi de registrar a passagem do
cortejo. Surgem, às portas dos antigos casarões, moradores arrebatados pela
novidade, pela presença de tantos visitantes. Quem bebia cerveja na 25 de Março
parou para admirar a procissão, a maioria levantou, muitos surpresos com aquela
mobilização.
Programação
As
celebrações da festa de Nossa Senhora da Boa Morte não se encerraram com a
concorrida procissão. Hoje (15) as homenagens prosseguiram, com alvorada de
fogos, missa festiva e procissão em homenagem a Nossa Senhora da Glória.
Depois, o lado festivo das celebrações, com o tradicional samba de roda no
Largo D’Ajuda, com os contagiantes ritmos do Recôncavo.
Na
quinta-feira (16) seguem as celebrações: haverá o suculento cozido no mesmo
Largo D’Ajuda, com mais samba de roda para encantar os visitantes e traquejar
os nativos. E, na sexta-feira (17), caruru seguido de samba de roda, no mesmo
local. Esses eventos – marcados para as 18 horas – vão animar o início do final
de semana da pulsante Cachoeira, cujas noites costumam ser de intensa boemia.
Quem
circula pela cidade – que fica à margem do Rio Paraguaçu – percebe que
Cachoeira vai muito além do seu rico patrimônio arquitetônico, de suas diversas
belezas naturais, de seus pujantes feitos históricos. Ali há, sobretudo, uma
vertiginosa mistura de cores e de raças que sintetiza a Bahia e sua cultura. É
como se, nela, efetivamente, a alma tivesse perdido seus limites, como disse o
escritor franco-argelino Albert Camus sobre o Brasil.
Foi essa densidade cultural
que fermentou fenômenos religiosos da magnitude da Irmandade da Boa Morte, cuja
importância transpôs as fronteiras brasileiras há muito tempo. Brasileiros – e
baianos – que desejem imergir na essência que originou esse País rico e diverso
têm Cachoeira como um dos mais instigantes pontos de partida.
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