Alguns
pensadores com inclinações positivistas tendem a enxergar as sociedades humanas
como fadadas ao progresso constante. Traçaríamos, sob essa perspectiva, uma
imaginária espiral ascendente, sempre galgando patamares superiores àqueles do
passado. Alguns avanços, efetivamente, são indiscutíveis: ninguém, com juízo ou
sem mínimas inclinações excêntricas, renunciaria ao conforto de uma lâmpada
elétrica para viver sob a luz de um candeeiro fumacento. Ou à comodidade de um
banho em chuveiro elétrico para ferver água em caldeirão numa fogueira.
Mas,
embora os avanços tecnológicos tendam a ser consensuais, a vida é constituída
por múltiplos matizes. Aqui, a superação de um determinado obstáculo, lá
adiante, vai ensejar o surgimento de um problema que, acolá, exigirá
consideráveis esforços para ser vencido. Esse é o lado fascinante das
sociedades humanas e da própria vida.
Até
aí os positivistas podem reivindicar alguma razão: o gênio humano, ao longo de
milhares de anos, produziu avanços consideráveis, dignos de orgulho e até de
exaltação. Porém, essa corrente filosófica, vira e mexe, esbarra em situações
capazes de pô-la em xeque, de até mesmo expô-la ao constrangimento. É o caso,
no presente, da ressurgência de um fundamentalismo religioso capaz de ameaçar
até mesmo as grandes conquistas da era moderna.
A
face mais ortodoxa desse fundamentalismo costuma ser associada ao islamismo: em
regiões remotas da Ásia e da África, grupos radicais sequestram e matam
mulheres e crianças, decapitam reféns ocidentais, desafiam governos e tocam
guerras fraticidas que semeiam a dor e o medo. Movem-se inspirados por uma
peculiar concepção de sociedade, esquecida no alvorecer da modernidade.
Fundamentalismo cristão
Por
aqui, contrariando toda a lógica positivista, também nos vemos às voltas com um
fenômeno novo: um fundamentalismo de inspiração pseudo-cristã iracundo,
rancoroso, pouco afeito à fraternidade dos Evangelhos. Fermentado desde meados
dos anos 1970, esse processo ganhou visibilidade nos últimos anos, alavancado
pela proliferação de seitas e pelo significativo controle dos meios de
comunicação.
Inicialmente,
esse fervor se manifestou com a implacável perseguição aos adeptos das
religiões de matriz africana e, sobretudo, aos homossexuais. Os ataques não se
limitaram às vituperações nas emissoras de tevê: envolveram, inclusive, assédio
e até agressões físicas. Tudo, é claro, envolto no discurso da pureza:
converter compulsoriamente os ímpios, aproximando-os de Jesus Cristo.
Aqui
ou ali, alguns insanos até se aventuraram a espatifar santos católicos aos
pontapés. Mas, dada a própria força da Igreja Católica, a prática ainda é
restrita e, eventualmente, criticada. Melhor, portanto, seguir fustigando o
candomblé e demonizando seus adeptos, mais vulneráveis à sanha fundamentalista.
Legislação
O crescimento
desse fundamentalismo conduziu à inevitável ampliação do número de alvos: das
militantes feministas que pelejam para descriminalizar o aborto até à redução
da maioridade penal, passando pela legalização da pena de morte e por maior
rigor criminal aos usuários de drogas, tudo que destoe desse dogmatismo é
estigmatizado. Quem discorda, é
inevitavelmente associado ao Tinhoso.
Se
isso se associasse à sanha de uma meia-dúzia de lunáticos, tudo bem: todos têm
o direito de conviver com seus demônios interiores da forma que melhor lhe
convêm. O problema é que o próprio Estado já se sujeita a essa sanha, com uma
bem fornida bancada do dízimo – más línguas falam em “trízimo” – impondo uma
agenda política que, caso prospere, breve conduzirá a humanidade de volta às
cavernas. É o que se vê em Brasília, nos estados e nos municípios.
São tempos difíceis: crise econômica – na
qual o trabalhador é o principal convocado para pagar a conta –, infindável
crise política, corrupção desenfreada e, desarranjando tudo, a emergência de um
conservadorismo religioso cujos desdobramentos são imprevisíveis. Coisa de
fazer Auguste Comte – o principal filósofo do Positivismo – rolar em sua tumba
lá em Paris, talvez renegando seus pensamentos...
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