A primeira impressão do visitante sobre a natureza singular de Cuba provém do sobrevoo noturno sobre Havana, momentos antes da aterrissagem no Aeroporto Internacional José Martí: ao invés da profusão de luzes alaranjadas que cobrem as grandes metrópoles capitalistas, a capital cubana é menos profusamente iluminada. É o primeiro indício das dificuldades que a ilha enfrenta, decorrente do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos há quase cinco décadas. Na fila da imigração, nas esteiras para o recolhimento de bagagens e no saguão do aeroporto novas impressões: vozes, gritos e a alegre agitação que moldam o temperamento do povo que, a exemplo dos brasileiros, foi objeto de intensa miscigenação.
O primeiro choque cultural provocado por uma sociedade que promoveu uma revolução que socializou os meios de produção é prosaica: a total ausência de outdoors anunciando quaisquer produtos ou serviços. Há, todavia, uma mensagem celebrizada num cartaz ainda nas imediações do aeroporto José Martí: “Hoje, milhões de crianças ao redor do mundo dormirão pelas ruas. Nenhuma delas é cubana”.
Cuba permaneceu sob domínio espanhol até meados do século XIX. Ao lado de Porto Rico, foi um dos últimos países da América Latina a obter independência formal da Espanha. Ao longo de séculos, ingleses, franceses, holandeses e, posteriormente, norteamericanos, alimentaram interesses em relação à ilha cuja localização estratégica – na entrada do Golfo do México, delimitando-se ao norte com o Oceano Atlântico e ao sul com o mar do Caribe – facilitava as incursões marítimas.
Algumas características são marcantes em Cuba ao longo dos quatro primeiros séculos de sua história: o rígido domínio colonial espanhol – a independência foi fruto de desgastantes insurreições armadas ao longo do século XIX – os conflitos étnicos (a minoria branca temia a constituição de uma “república negra” nos moldes do Haiti e, portanto, refreava a importação de mão-de-obra escrava da África) e a produção de fumo nas províncias do Oriente e de açúcar em todo o país.
Quando finalmente se libertou da Espanha, Cuba tornou-se protetorado norteamericano, que inclusive podia intervir militarmente na ilha quando as circunstâncias exigissem. Os termos desse acordo entre a elite branca cubana e os norteamericanos tomaram forma através da famosa Emenda Platt. As intervenções, a propósito, se sucederam, mais com a finalidade de assegurar a integridade das propriedades dos Estados Unidos em Cuba que propriamente assegurar a estabilidade política da ilha, sempre sujeita a conturbações.
Abertura
Esse passado conturbado, a limitada extensão da ilha e a independência conquistada com a Revolução de 1959 são, hoje, motivo de orgulho para os cubanos. Particularmente em função da proximidade geográfica do império norteamericano, já que a Flórida fica a apenas 180 quilômetros de Cuba. Frases pintadas em muros de Havana exaltam a bravura do povo que resistiu às pressões imperialistas, enquanto tantos outros vergaram.
A derrocada da União Soviética impôs dificuldades a Cuba que foram sendo amenizadas ao longo da década de 1990. A dimensão dessa ajuda pode ser avaliada pela quantidade de veículos Lada que circulam pelas ruas de Havana. Há também antigos Gordini, Buick e – surpresa – muitos automóveis importados da Coréia do Sul e da Europa. Coisa impensável anos atrás há em funcionamento no Malecón – a avenida litorânea de Havana – uma concessionária Fiat.
O mais visível sinal de aproximação de Cuba com o mundo, porém, está nos investimentos realizados no setor turístico. Hotéis imponentes estão sendo erguidos ou reconstruídos, através de parcerias do governo com grupos hoteleiros do exterior, particularmente da Espanha. Os resultados são visíveis através das ruas de Havana, já que estrangeiros podem ser vistos com frequência visitando “La Habana Vieja” com seus imponentes casarões, hotéis, clubes sociais e antigos cassinos ou espalhados pelos bares, restaurantes e cafeterias existentes ao longo da orla.
A dificuldade cubana de estabelecer relações comerciais com outros países, no entanto, se devem mais ao embargo econômico imposto pelos Estados Unidos que às alegadas disposições ditatoriais do Regime instalado em 1959. Os êxitos alcançados, a propósito, poderiam ser muito maiores sem o embargo, o que poderia incentivar outros países latino-americanos a trilhar o mesmo caminho.
Saúde e Educação
Cuba tem uma das menores taxas de mortalidade infantil do mundo e um sistema educacional democrático e gratuito, que alcança parcela expressiva dos jovens. Caminhando pelas ruas da cidade percebem-se as razões. Praticamente em todos os quarteirões se pode ver postos médicos. O atendimento é garantido, mesmo que demore alguns minutos. Os casos mais graves são encaminhados para os hospitais espalhados pela capital – ao contrário das cidades de países como o Brasil, os hospitais não se concentram em uma única região da cidade.
As escolas também são objeto de atenção especial. Apesar das dificuldades com a falta de material – outro desdobramento do embargo – o acesso é universalizado e as unidades estão espalhadas pela cidade. Crianças, adolescentes e jovens a caminho de escolas e da universidade é rotina na cidade.
O que chama atenção, no entanto, é a discrição como se apresentam as escolas e unidades de saúde cubanas. Nada de gigantescos letreiros anunciando que ali é oferecido um serviço público à população. Nenhuma referência à benemerência dos governantes em conceder direitos: nascidos e criados no pós-1959, a maioria dos cubanos têm uma aguda consciência dos seus direitos como cidadãos e apresentam nível de politização elevado, como seria de se esperar.
Personalismo
Contrariando o que muitos podem imaginar, Fidel Castro não é figura onipresente nas ruas de Havana. Não existem estátuas portentosas, largas avenidas, bairros, hospitais, viadutos ou aeroportos com o nome do ex-presidente. Nesse quesito, os coronéis do Nordeste brasileiro são imbatíveis no culto à própria personalidade. Em Havana, o que mais se aproxima disso é o Museu da Revolução, onde estão expostos armas e apetrechos usados ao longo da campanha iniciada na Sierra Maestra e que resultou na Revolução de 1959. Os cubanos, contudo, não são obrigados a visitar o espaço em romaria.
Che Guevara, o outro artífice da revolução, é alvo de homenagens mais ostensivas, mas nada que surpreenda: proliferam as camisetas com o rosto estampado do revolucionário, normalmente vendidas como souvenirs para turistas. Afinal, a imagem do rosto do “Che” é a mais difundida no mundo, depois de Jesus Cristo, é claro. Em Cuba não existe a ambição de substituir as religiões tradicionais pelo culto às personalidades da revolução, como se tentou na União Soviética e no Vietnam, por exemplo.
Religiões
No domingo, normalmente os cubanos folgam, dedicando-se ao beisebol – o esporte mais popular do país – e até mesmo ao futebol, onde alguns peladeiros razoavelmente habilidosos exibem camisas da Seleção Brasileira. Há, também, quem ostente camisas da Seleção Argentina ou de clubes europeus, sobressaindo-se o Milan.
As andanças pelas ruas de Havana permitem perceber que, ao contrário do que se alardeia, não existem restrições às religiões. No mesmo domingo, é possível acompanhar uma missa na Catedral de Havana, um culto numa igreja Batista próxima ao Capitólio ou outro culto, improvisado, de uma igreja neopentecostal numa saleta apertada.
No âmbito religioso, no entanto, o mais notável é a permanência da ancestralidade africana. Em frente a uma igreja católica portentosa, o ritmo contagiante de tambores e outros instrumentos embalam uma “santería”, denominação do candomblé praticado no Caribe. Não são poucos os adeptos da religião em Cuba e que, normalmente, desfilam vestidos de branco aos domingos.
Registradas de relance, essas observações permitem desmistificar muito do que se fala e se difunde sobre Cuba e o regime socialista vigente na Ilha. O crescimento do turismo, movido pela cultura e pelas belezas do país, tende a aprofundar essa percepção no longo prazo. As esperanças voltam-se agora para o injustificável embargo imposto ao país e que já não tem razão de ser nesses primeiros anos do século XXI.
Nenhum governo ou regime se sustenta 50 anos no poder sem a concordância e a aquiescência do povo. As ditaduras na América Latina são um exemplo. Os regimes ditatoriais na Europa pré-Segunda Guerra são outro exemplo. Os Estados Unidos precisam amadurecer e aceitar essa realidade que em 2009 completou meio século.
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